Há exatos 10 anos, um incêndio de grandes proporções atingiu a parte superior do Mercado Público de Porto Alegre. A noite daquele sábado, 6 de julho de 2013, foi de apreensão para a população da cidade.
Eram 20h30min quando as chamas começaram, no canto ao lado da Rua Siqueira Campos com a Avenida Borges de Medeiros, e se alastraram rapidamente por todo o teto. Em minutos, muitas pessoas já se aglomeravam no entorno do cartão-postal da Capital para acompanhar o combate ao fogo pelo Corpo de Bombeiros.
Iara Fátima Rufino, 67 anos, permissionária da Sorveteria Beijo Frio, se emociona ao recordar daqueles momentos de tensão.
— Tinha acabado de fechar a loja e chegado em casa. Uma funcionária nossa me ligou e disse que estava pegando fogo no Mercado, que era para olhar na televisão — relata, uma década depois.
Única permissionária negra do Mercado Público, e tendo sido convidada para abrir sorveteria no local em função da qualidade de seu sorvete artesanal, Iara passou por muita aflição.
— A minha loja acabara de ser restaurada para a Copa do Mundo de 2014, estava uma "teteinha" — orgulha-se ainda hoje.
— Quando consegui entrar na minha loja, fiquei parada. O balcão de bebida ficou intacto, mas estava tudo cinza e queimado. Perdi tudo, não me sobrou um garfo — lamenta, definindo o momento como "chocante e cruel".
Conforme relatos da época ao jornal Zero Hora, moradores da região do Centro Histórico reclamaram de uma suposta demora dos bombeiros durante a operação. Caminhões da corporação de Porto Alegre e da Região Metropolitana foram utilizados para o combate ao fogo. Ambulâncias chegavam para o caso de haver alguém intoxicado em razão da fumaça.
O então prefeito José Fortunati negou problemas nos equipamentos, mas mencionou a dificuldade dos militares em engatar as mangueiras usadas na ocasião. Entretanto, integrantes da própria corporação observaram à imprensa que mangueiras estouraram, hidrantes não funcionaram e a quantidade de máscaras usadas contra a fumaça tóxica teria sido insuficiente.
Francisco Assis dos Santos Nunes, o Chico, 69, permissionário do restaurante Sayuri, revela que pensa frequentemente no incêndio.
— Por incrível que pareça, quase todos os dias eu lembro. Principalmente depois de nove anos, quando a Adriana Kauer (presidente da Associação do Comércio do Mercado Público Central) me deixou aqui um presente para lembrar — afirma.
Perdi tudo, não me sobrou um garfo.
IARA FÁTIMA RUFINO
Permissionária
Trata-se de um quadro protegido por vidro contendo utensílios de cozinha colhidos em meio às cinzas do incêndio no Sayuri. Ficaram guardados e foram entregues a Chico em um ato simbólico, por ocasião da reabertura do estabelecimento, em setembro de 2022. Exposto na parede do restaurante, uma frase junto aos itens diz: "Nem o fogo é capaz de destruir a esperança!".
— Enfrentamos uma dificuldade muito grande que foi sobreviver nove anos lá embaixo (piso inferior). Depois de nove anos, fui ver clientes que voltaram após saberem que reabrimos — diz.
Durante o incêndio, labaredas se insinuavam pelas janelas e pelo telhado (veja as fotos abaixo). O cheiro de fumaça pôde ser sentido em diversos outros bairros e até na Zona Sul. Fotografias da época sugerem uma proporção muito maior do que se esperava em termos de danos materiais à estrutura da edificação. Porém, não houve feridos, e o piso térreo não chegou a ser atingido pelas chamas.
Como o Mercado Público estava fechado desde as 19h daquele sábado, não havia consumidores dentro do prédio histórico, o que pode ter evitado uma tragédia. Apenas os donos do restaurante vegetariano Telúrico estavam no local, pintando as paredes do estabelecimento, com as portas fechadas, quando as chamas começaram no restaurante ao lado. Com o auxílio de extintores, chegaram a dar o primeiro combate ao fogo, mas não conseguiram.
Há 10 anos, houve questionamentos sobre o que poderia ter ocorrido se o incêndio tivesse acontecido em um dia do meio da semana ou em horário comercial. Na época, o então prefeito da Capital, José Fortunati, afirmou que o Mercado Público estava com o Plano de Prevenção e Combate Contra Incêndios (PPCI) vencido havia seis anos.
Para Claudemiro Adam, 48, permissionário do Bar Chopp 26, Mamma Julia e Pizza Veg (antigo Telúrico), no começo, até falar sobre o episódio de 2013 era difícil.
— Estava chegando em Santo Antônio da Patrulha, na casa do meu pai. Foi quando eu soube do incêndio — relembra.
— Queimou tudo, não sobrou um talher. Só fiquei com um cardápio que estava em frente ao restaurante — completa, estimando o prejuízo em R$ 1 milhão.
A Associação de Artesãos Porto Alegre Solidária (Asposol) foi bastante prejudicada pela ocorrência daquele sábado. Houve inclusive perda de associados, sendo que atualmente 19 pessoas gerem e tomam as decisões na loja.
Segundo a associada e artesã Gislaine Clavijo, 53, não foram tempos fáceis.
— Não tínhamos noção do que havia acontecido e do tamanho da perda — resume.
Para Gislaine, o custo para manutenção do estabelecimento, que foi o primeiro a ser reaberto no piso superior, representou um desafio, mas a felicidade pela retomada foi ainda maior.
— Esta loja tem um valor significativo para nós — reconhece.
O piso superior teve oito estabelecimentos destruídos pelo incêndio: Casa de Pelotas, Telúrico, Atlântico, Mamma Julia, Marco Zero, Taberna 32, Sayuri e Beijo Frio. O Memorial do Mercado Público também ficou em ruínas.
O incêndio de 2013 destruiu 60% do pavimento superior e deixou um caminho de incertezas pela frente, especialmente para os permissionários que ficaram de portas fechadas ou trabalharam de forma provisória no espaço de eventos, situado no pavimento de baixo.
Por incrível que pareça, quase todos os dias eu lembro do incêndio.
FRANCISCO ASSIS DOS SANTOS NUNES
Permissionário
Os peritos do Instituto-Geral de Perícias (IGP) chegaram à conclusão de que um curto-circuito de grandes proporções causou o incêndio. O problema ocorreu em cima da fritadeira da banca 46 (restaurante Atlântico).
As obras de recuperação do local tiveram início naquele mesmo ano, porém foram paralisadas por falta de recursos em 2016. A retomada só ocorreu em janeiro de 2022. O investimento integrou parte de um Termo de Conversão de Área Pública (TCAP) firmado entre a prefeitura da Capital e a empresa Multiplan, com investimento de até R$ 9,4 milhões.
O que foi feito e as ideias para o Mercado Público
Segundo a presidente da Associação do Comércio do Mercado Público Central (Ascomepc), Adriana Martini Kauer, 51, que também possui estabelecimento no local (Comercial Martini, no andar inferior), muita coisa precisou ser feita depois do incêndio.
— Houve a retirada da parte queimada e veio a reconstrução de paredes rachadas, e a questão hidráulica, que teve de ser refeita — enumera, mencionando que ficou quatro meses sem poder trabalhar após o sinistro.
Além disso, foram realizadas melhorias no sistema elétrico, adequado às exigências do novo PPCI e aos requisitos da subestação de energia elétrica e do quadro geral de distribuição de baixa tensão.
Atualmente, os elevadores e as escadas rolantes novas estão funcionando. Há goteiras em alguns cantos da edificação, o que se percebe quando chove.
— No telhado não foi só a parte de metal. Todo telhamento de barro quebrou por causa do fogo. Essas telhas de barro precisaram ser feitas — detalha Adriana.
De acordo com ela, a prefeitura necessita finalizar o que chama de "acantonamento", espécie de compartimentos que impedem que o fogo se alastre, em um dos lados da edificação. Durante a entrevista, a comerciante faz menção a algo significativo para todos que vivenciaram o incêndio e ainda hoje tiram o sustento a custo de muito suor no local.
— O próprio PPCI do Mercado Público está em dia — compartilha Adriana, sem esconder certo alívio.
O secretário municipal de Planejamento e Assuntos Estratégicos, Cezar Schirmer, confirma que o acantonamento ainda necessita ser finalizado no lado voltado para o Largo Glênio Peres.
— Isso é o que realmente falta — atesta.
Conforme Schirmer, foi feita a pintura externa do prédio, reaberto o andar superior com novas lojas, além de ter sido realizada a reforma nos banheiros. O telhado, garante, está sendo consertado para se acabar com as goteiras.
— Outra coisa que fizemos foi o chafariz (em frente ao Mercado, no Largo Glênio Peres), as escadas rolantes e os elevadores, que estão funcionando.
No lado voltado para a Borges de Medeiros, deverão ser criados deques externos semelhantes aos existentes perto do chafariz e em bares da Rua da Praia. Luzes temáticas no lado de fora também estão sendo instaladas.
No espaço de eventos do piso inferior, a ideia da prefeitura é criar um calendário permanente de feiras. Por sua vez, o esgoto do Mercado está com problema e a licitação deverá ser aberta em julho.
— Queremos que tenha estacionamento no Largo Glênio Peres para quem vá comprar no Mercado Público. Nos sábados, muita gente estaciona ali, mas não é para ir no Mercado — conclui o secretário.
No final de julho de 2022, os restaurantes do piso superior foram entregues aos permissionários depois de nove anos de interdição. Porém, a solenidade de reabertura de seis estabelecimentos (Bar Chopp 26, Taberna, Pizza Veg, Mamma Julia, Sayuri e Sorveteria Beijo Frio) ocorreu apenas em 5 de setembro do ano passado.
Na oportunidade, houve muita emoção por parte dos permissionários e até desenlace de fitas vermelhas na frente dos espaços. Apenas a Associação de Artesãos Porto Alegre Solidária já estava em funcionamento antes dos demais.
Quatro incêndios e uma enchente
O Mercado Público não deixa de ser uma espécie de sobrevivente à passagem do tempo. Em estilo neoclássico, o prédio sofreu outros três grandes sinistros — em 1912, 1976 e 1979.
Com projeto do engenheiro Frederico Heydtmann, foi inaugurado em 3 de outubro de 1869. O prédio também resistiu à enchente de 1941, quando até barcos passavam pelas ruas do entorno.
O Mercado foi tombado como Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre em 1979. Entre 1990 e 1997, a estrutura passou por restauração. Atualmente, conta com 106 estabelecimentos no total.
A Associação do Comércio do Mercado Público de Porto Alegre estima que 30 mil pessoas passem diariamente pelo local. Porém, antes da pandemia, até 100 mil pessoas circulavam todos os dias por seus corredores.