Um rebuliço tomou de assalto os pedestres que circulavam pela Praça da Alfândega, no Centro Histórico de Porto Alegre, na manhã de 10 de março de 1973. Quem cruzava o piso com desenho ondulado da Rua da Praia acabou atraído a espiar, perplexo, a concha que cobria um pesado telefone de ferro.
Primeiro orelhão da cidade, o equipamento era do tipo moedeiro, com um disco fazendo as vezes de teclado numérico. O estranho objeto estava cercado por servidores da Companhia Riograndense de Telecomunicações, a CRT, ato registrado por uma fotografia em preto e branco.
Com o fone fora do gancho, o retrato mostra um homem de calça social escura, paletó em tons claros e gravata. É Firmo Bernardes, designado para uma missão: faria a chamada inaugural. Funcionário exemplar, ligou para o chefe de todos na empresa.
— Presidente, está inaugurado o orelhão da Praça da Alfândega. É o Firmo quem está falando — esclareceu o técnico-chefe da seção de instalação e manutenção da rede matriz, que acolhia a região central.
A experiência foi contada pelo próprio Firmo ao historiador Rogério Rodrigues Verlindo, 67 anos. Curador da memória da CRT até os últimos suspiros da estatal, Verlindo foi convidado por GZH a destrinchar a imagem que registra o fato de 50 anos atrás.
— Só tem um homem de capacete, então era o técnico dessa instalação. Chamava-se Nilo Fialho. Dando uma entrevista é o mais alto funcionário da CRT que compareceu ao evento, o diretor financeiro Sérvulo Luiz Zardin. Quer saber também o nome do presidente? — questiona Verlindo, informando se tratar de Jorge Rafael Cézar Moreira que estava no lado oposto da linha.
A solenidade motivou uma convocação no boca a boca e por memorandos entre os escaninhos da CRT, recorda a recepcionista Veneranda Rita Luchese, também vista na famosa foto distribuída para todas as sucursais. Ela tinha 26 anos quando abriu um sorriso meio encabulado para a câmera.
— Foi um momento festivo, o povo emocionado. Muita gente olhava para o telefone e não entendia como funcionava. Imagina, um telefone disponível pra todo mundo na rua? Os visitantes nos aplaudiram depois do discurso sobre a utilidade do orelhão e da necessidade de preservar o bem público — detalha Veneranda.
Zero Hora do dia seguinte trazia a manchete: "Primeiro orelhão da cidade". Era o número 1 de uma série de 50 que seriam espalhados em três meses. A reportagem não está assinada, mas a curiosidade do repórter fica evidente em outro trecho: "É um tipo de cabine que permite somente a colocação da cabeça de quem telefona".
A publicação detalha que a nova cabine foi "apelidada pelo carioca de orelhão", apesar de o protótipo ser da arquiteta Chu Ming Silveira, nascida na China e radicada em São Paulo. O design tinha como objetivos ajudar na acústica e proteger o usuário e o aparelho contra as intempéries. Ganhou ainda os nomes de capacete de astronauta e tulipa, no caso de haver vários aparelhos reunidos em torno de uma mesma base.
Firmo Bernardes já era veterano nas telecomunicações: ingressou em 1941 na Companhia Telefônica Rio-Grandense (a CRT só foi criada em 1962, após o governador Leonel Brizola encampar a Companhia Telefônica Nacional, de capital norte-americano). Altivo e elegante, gerava galanteios das colegas e ciúmes da esposa, recorda a filha, a professora Iara Teresinha Bernardes Malta, 74 anos.
— Minha mãe ficava uma arara. Nas inaugurações, o pai gostava de pompa, cortando fita. Ia todo bonitão — conta Iara.
Ao se aposentar, voltou à mídia, desta vez na capa do informativo da companhia. Para a família, deixou o gosto pelas comunicações, além de aparelhos antigos preservados até hoje. Morreu aos 96 anos, lúcido, contando histórias e gerando outras muitas.
— Recordo de ligar para o 138 e ele puxar a extensão, dizendo "desliga isso aí" — lembra a neta, Anelise Bernardes Malta, 44, que na adolescência se conectava ao Teleamigos, serviço de chat por voz.
A memória da CRT
O primeiro telefone de rua permitia conversar horas a fio com uma única ficha. Somente após 1981 os modelos foram substituídos, medindo o tempo e exigindo a inclusão de mais créditos. Nesse momento foi instituindo o barulho que virou expressão: "cair a ficha".
Um orelhão original e de funcionamento idêntico aos do lote inaugural poderá ser visitado no Memorial da CRT, previsto para ser inaugurado até meados de abril (vejas as fotos abaixo). A cobertura de fibra foi restaurada e posicionada defronte a uma parede revestida pela fotografia do grupo de pioneiros. O espaço tem ainda painéis com a evolução da telefonia, do século 19 até a privatização da estatal.
O museu, que fica na sede da Associação dos Aposentados da CRT (AACRT), é fruto de um projeto lançado há uma década.
— Me sinto realizada de contar isso para todo mundo, não deixar morrer a nossa história — afirma a jornalista Márcia Jardim Gomes, 62 anos, diretora social da AACRT e ex-funcionária da companhia.
A exposição tem parte do acervo de 1,2 mil itens resgatados pelo curador da empresa, quando ela ainda operava. Destaque para uma mesa da década de 1960, pela qual as telefonistas conectavam os usuários — e escutavam a conversa, se vencidas pela curiosidade.
— A maioria não fazia, mas tinha quem brincasse que eram bem informadas — faz piada Márcia, sem generalizar.
Placas, fotografias, aparelhos, ferramentas e uniformes doados por quem viveu a CRT (incorporada à Brasil Telecom em dezembro de 2000) estão reunidos à espera do público, com acesso gratuito. Parentes de uma parcela dos 5 mil membros da associação compartilharam objetos, e novas doações são bem-vindas.
Das fichas aos cartões
Em 1994, as fichas foram substituídas pelos cartões telefônicos, que traziam estampas das mais variadas: pontos turísticos, pássaros, personagens da literatura, artistas, ídolos do esporte, políticos, novelas e desenhos. No verso, textos descritivos das imagens educavam e distraíam nas filas.
Quem rodava o país tinha a vantagem de encontrar séries de cada companhia estadual. Edson Siebel, 47 anos, pegou gosto pelo colecionismo em uma praça de Cuiabá (MT): conheceu moradores trocando os cartões, levou os repetidos e chegou a cerca de 20 mil deles, distribuídos por temática em uma dezena de álbuns.
— Eu não podia ver um orelhão que corria para ver se alguém tinha deixado um cartão. Ainda tenho uns 15 mil e, sempre que olho pra eles, recordo dos locais que visitei — define o caminhoneiro.
Em Gravataí, o transportador guarda o tesouro devidamente organizado. Uns poucos, mais raros, nunca foram retirados do plástico. Há um comércio na web — cartões com fotos de Ayrton Senna podem ser encontrados a R$ 200 cada. Siebel tem essa série completa e promete jamais se desfazer dela.
— Se ele ama mais os cartões do que me ama? Acho que não. Mas os filhos já pediram a coleção de doação e ele negou — diz a esposa Vivian Carla Siebel, 44.
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Serviço
A sede da Associação dos Aposentados da CRT, onde será instalado o Memorial da CRT, fica na Rua Dr. Ramiro D’Avila, nº 176, Azenha, em Porto Alegre. A abertura do espaço está prevista para abril. Telefone: (51) 3076-2450.