A Rua da Praia, no Centro Histórico de Porto Alegre, já era um ponto tradicional de passeatas e manifestações desde o século 19. Era centro cívico, ponto de reunião de políticos e estudantes, e o núcleo principal de cafés, confeitarias, livrarias e cinemas da cidade.
Registros históricos apontam que uma manifestação popular promovida pela União Republicana em 1890 foi dissolvida "a bala" pelo Exército, na esquina da Rua Uruguai, local muito próximo à Esquina Democrática. Em 1915, uma manifestação contra a candidatura do marechal Hermes da Fonseca ao Senado foi combatida pela Brigada Militar com violência.
A Rua dos Andradas voltou a ser palco de luta na Revolução de 1923, protagonizada por opositores ao governador Borges de Medeiros. Nos anos 1930 e 1940, rodas de conversa entre intelectuais se estendiam pela via, a poucos passos da Esquina Democrática, em frente à antiga Livraria do Globo.
— Via-se figuras como Oswaldo Vergara, Moises Vellinho, Osvaldo Aranha, Rubens de Barcellos, Athos Damasceno Ferreira, Carlos Dante de Morais, Walter Spalding, entre outros. Às vezes, até o presidente do Estado, Getúlio Vargas, passava por ali — ilustra o historiador Gunter Axt, ex-secretário da Cultura de Porto Alegre.
Segundo Axt, somente nos anos 1970 a população passou a eleger o cruzamento da Andradas com a Borges de Medeiros como o espaço de encontros e manifestações políticas e culturais:
— A Esquina Democrática é uma construção recente. O coração do convívio social, até os anos 1960, ficava na Rua da Praia, porém mais deslocado para o encontro da Praça da Alfândega com a Rua General Câmara, que era chamada de Rua da Ladeira.
Conforme o historiador, o deslocamento do eixo das intervenções políticas e sociais teve importante impulso do movimento negro porto-alegrense, em mobilizações encabeçadas por precursores como o professor e poeta Oliveira Silveira.
— A mudança na configuração do Centro ocorreu a partir da aceleração da verticalização da cidade e, posteriormente, com a criação do calçadão da Andradas, que barrou a circulação de automóveis naquele perímetro, qualificando a concentração e a ocupação humana em suas atividades — diz Axt.
O tombamento da Esquina Democrática foi efetivado em 17 de setembro de 1997. Hoje, o ponto de encontro no centro da Capital permanece como um símbolo da ação política para a atual geração.
— Quando comecei a militar, no final dos anos 1990, a Esquina Democrática já representava a luta pela democracia. Lembro que ouvia algum dos mais velhos, como Jussara Cony, dizerem: "Ah, eu e fulano nos conhecemos desde o tempo do som" (discursos dos anos 1970 e 1980). Nesses 24 anos em que sou militante, sempre tivemos atos em outros lugares, como nos largos Zumbi dos Palmares e Glênio Peres, mas nada altera a história e a relevância da Esquina Democrática — avalia a ex-deputada Manuela D'Ávila.
Cenário de contrastes
A Esquina Democrática já teve dias de glamour, especialmente no anos 1940 e 1950. Um dos marcos desta época é a inauguração do edifício Sulacap, em 1949, projeto dos arquitetos Roberto Capello e Arnaldo Gladosch. Considerado o mais suntuoso prédio da cidade por décadas, abrigava instituições financeiras e comerciais, significativas para a economia da Capital e do Estado.
— Sou apaixonado por esta parte do Centro desde os meus 15 anos, quando cheguei em Porto Alegre. Mas muita coisa mudou. No passado, a gente tinha que vir arrumado para não passar vergonha. Era maravilhoso passear entre as confeitarias e livrarias — lembra Nilton Belsarena, 65 anos, diretor da Associação Nacional dos Aposentados e Pensionistas, que ocupa andares do Sulacap.
Atualmente, o ambiente é de contrastes. Ainda há lojas de diversos segmentos, parte delas representante de marcas consolidadas na economia gaúcha. Elas, entretanto, mantêm-se em um cenário que destoa da antiga paisagem. A imagem atual é composta por diversos micro e pequeno empreendimentos, como a carrocinha de pães de queijo onde trabalha Márcia Bach, 40 anos:
— É um local ótimo pelo movimento de trabalhadores. Das 7h até as 16h, a gente vende entre 300 e 400 pãezinhos.
O local também é dividido com bancas de jornais, informais de diversos segmentos e até imigrantes buscando oportunidades de vida.
— Aqui é um ponto muito bom para vendas. O povo procura preço bom e encontra o que precisa nas bancas do calçadão — argumenta o equatoriano Elvis Tuquerres, 50 anos, que se mudou com a família e, há quase uma década, comercializa vestuário e acessórios na borda da Esquina Democrática.
O aprofundamento da crise econômica com a pandemia também acentuou o declínio econômico e estético do lugar, onde podem ser vistos pedintes, andarilhos e pessoas em situação de moradia na rua. Uma obra para revitalização dos canteiros da Borges, entre a Andradas e a Rua José Montaury, recorta temporariamente o espaço com tapumes de concreto armado.
Duas visões sobre um fato trágico
O centro de Porto Alegre se transformou em campo de batalha no dia 8 de agosto de 1990. Policiais militares e trabalhadores rurais sem-terra se enfrentaram com tiros de festim, gás lacrimogêneo, ferramentas e pedras.
— Eu era prefeito recém-eleito. Soube que estava acontecendo uma manifestação tensa em frente ao Palácio Piratini e resolvi caminhar até lá para me apropriar do que ocorria — conta o ex-governador e ex-prefeito da Capital Olívio Dutra, em entrevista na Esquina Democrática.
Ao aproximar-se da Praça da Matriz, subindo a Rua da Ladeira (General Câmara), Olívio percebeu que o tensionamento imposto pelos integrantes do protesto tinha provocado a reação da Brigada Militar, que avançou sobre os manifestantes com bombas de efeito sensorial, tiros de munição não letal, escudos e cassetetes.
O corre-corre se espalhou pelas ruas Riachuelo, Jerônimo Coelho e Andrade Neves, até desaguar na Borges de Medeiros e encontrar resistência dos colonos na Esquina Democrática.
— Eu estava trabalhando quando vi aquele tumulto. Era uma confusão que não se entendia. Briga entre agricultores e brigadianos — lembra o engraxate Sílvio Machado da Silveira, que lustra sapatos no canteiro da Borges há mais de 40 anos.
Em um dos cantos do quadrilátero, militares ficaram isolados por uma contraofensiva dos sem-terra. Em meio ao conflito, o policial militar Valdeci de Abreu Lopes, na época com 27 anos, teve a garganta cortada por um golpe de foice e acabou não resistindo.
Com a agressão ao PM, colonos recuaram, temendo mais mortes. Correram em direção ao Paço Municipal e abrigaram-se no hall de entrada do prédio e sobre a mesma escadaria onde, anos antes, havia ocorrido o comício das "Diretas Já". Olívio recorda:
— Não consegui chegar ao palácio e, quando soube que a prefeitura estava sendo ocupada por manifestantes que procuravam refúgio, pois um brigadiano havia sido ferido, voltei correndo.
Ao chegar na Praça Montevidéu, ele viu a sede do Executivo municipal cercada pelo contingente da Brigada Militar e um empurra-empurra diante da porta entre aqueles que buscavam guarida.
— Fui impedido de passar. Era o prefeito da cidade e estava preso do lado de fora da prefeitura — rememora.
Não muito distante dali, Sílvio Silveira, assim como muitos outros trabalhadores, já havia recolhido seus apetrechos para distanciar-se do tumulto.
— Eu me lembro como se fosse ontem. Só queria ficar longe das bombas e da confusão. Foi o dia que mais me marcou desde que trabalho aqui — diz o engraxate da Esquina Democrática.
O conflito durou mais de oito horas e só foi apaziguado após esforços de negociação e pacificação.