No início de 2023, o Brasil voltou a deparar com uma encruzilhada democrática: a invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, o que colocou em xeque valores fundamentais para a sociedade. Em momentos assim, alguns cenários se tornam personagens.
Um desses ambientes é a Esquina Democrática, em Porto Alegre. O cruzamento entre a Rua dos Andradas e a Avenida Borges de Medeiros está perpetuado na memória dos gaúchos como um local de ação política, protestos e propagação de ideias transformadoras.
A confluência destas duas artérias da circulação humana, no coração da cidade, era relevante desde a fundação da Capital, mas consolidou-se emblemática para a política regional e nacional na segunda metade do século passado, quando o país almejava a redemocratização.
Pela intensa movimentação de pessoas, o quadrilátero delimitado pelos prédios Sulacap, Scarpini, Vera Cruz e Missões — elementos da modernização de Porto Alegre — passou a ser cotidianamente utilizado como palanque para denúncias e reivindicações.
— Em 1976, os vereadores Glênio Peres e Marcos Klassmann elegeram-se com o slogan "Vote contra o governo", referindo-se à ditadura militar. No começo de 1977, por seus discursos que denunciavam perseguição, censura e tortura, ambos foram cassados. Não podiam sequer entrar na sede do Legislativo — lembra o vereador Pedro Ruas (PSOL).
Hoje com 67 anos, Ruas era um jovem ouvinte dos discursos e acompanhava atividades promovidas pelos vereadores cassados. O impedimento, segundo ele, não cessou a fúria dos opositores contra a violência do regime dos generais. Pelo contrário: os parlamentares convertidos em ativistas pela intransigência do Estado de exceção encontraram meio transgressor e criativo de propagar ideias.
— Passaram a usar a Esquina Democrática para seus discursos. Isso acontecia a cada dois dias. Em alguns períodos, diariamente. Usavam megafones e reuniam muitas pessoas interessadas em ouvir. Então, dá para ter um conceito de que Glênio Peres e Marcos Klassmann criaram, na prática, a Esquina Democrática como elemento definitivo da política de Porto Alegre — sustenta Ruas.
Os anos seguintes, ainda sob o espectro da ditadura, continuaram exigindo presença e atuação de forças democráticas, movimento estudantil, sindicalismo e vertentes ideológicas abrigadas no guarda-chuva do único partido de oposição reconhecido pelo regime militar, o MDB.
— Com o chamado pacote Geisel (do general Ernesto Geisel, então presidente), em 1977, que admitia o processo de abertura política, sentimos que era o momento de falar com a população e aumentar a pressão pela mudança, que era necessária e já havia se tornado inevitável — conta José Fogaça, ex-senador e ex-prefeito da Capital.
Fogaça lembra que ainda era o tempo no qual "receitas de bolo" saíam estampadas na capa de jornais, substituindo manchetes e notícias consideradas "subversivas" pelos censores da ditadura.
— Em 1978 e 1979, aquele espaço era o grande centro de circulação de pessoas envolvidas no processo econômico da cidade. Era o lugar ideal para falarmos com os trabalhadores e o povo que precisava entender as mudanças, e a gente tinha muito para falar — diz Fogaça, deputado estadual à época.
Por volta de 17h, os ativistas daqueles dias estavam prontos para agir, diante do rebuliço dos transeuntes que tingia o cruzamento nos quatro sentidos. Em segundos, o palanque improvisado se formava. Alguém carregava o caixote de frutas arrecadado no Mercado Público até o meio da encruzilhada. Outra pessoa era responsável por conduzir a caixa de som amplificada. O microfone vinha nas mãos de quem ia discursar.
À espreita, estavam também preparados agentes da repressão designados pelo regime. A tarefa era avisar a autoridade política para que mobilizasse as forças policiais, as quais recebiam ordens para intervir. Aglomeração de pessoas em ato público, naqueles tempos, era proibida e combatida com arbitrariedade.
Prisões e detenções eram corriqueiras. O prazo possível de cada manifestação expirava após meia hora ou 40 minutos, tempo calculado pelos ativistas para a chegada da Brigada Militar. Fogaça recorda:
— No final de uma atividade, em que haviam discursado diversas lideranças, brigadianos chegaram avançando sobre a multidão. Foi uma correria. Quando olhei para o lado, o cara da caixa de som tinha sumido. Fui detido com microfone na mão.
Já no início da década de 1980, José Fogaça foi escolhido coordenador, no Rio Grande do Sul, do movimento "Diretas Já!", que agitava o Brasil em torno do debate sobre o voto universal para eleição de todos os cargos da administração pública e da representação política no país, inclusive para presidente — o que encerraria, quase uma década mais tarde, o ciclo dos militares no poder.
Tancredo e Ulysses
Numa das atividades, em 1984, Tancredo Neves, um líder da transição que mais tarde foi eleito presidente pelo voto do Colégio Eleitoral, caminhou pela Esquina Democrática e discursou sobre o caixote. Ao lado dele, estavam Fogaça e outros líderes, como o deputado federal Ulysses Guimarães, que viria a ser o presidente da Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988), e o ex-senador Pedro Simon, que seria o governador do Estado entre 1987 e 1990.
A caminhada chegou à Praça Montevidéu, onde um palanque estava montado sobre a escadaria do Paço Municipal. O público ouvinte se espalhava pelo Largo Glênio Peres e se distribuía pela Borges de Medeiros até a Esquina Democrática.
Milhares de pessoas acompanharam o ato. Fafá de Belém cantou para o público no palco onde também estavam Leonel Brizola, ícone da Campanha da Legalidade e da resistência à ditadura, e os futuros presidentes da República Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.
Tancredo tornou-se presidente, mas morreu antes de assumir, em 21 de abril de 1985. O voto direto para presidente veio somente quatro anos mais tarde, após a promulgação da Constituição Cidadã.
Depois disso, a Esquina Democrática popularizou-se. No início da década de 1990, abrigou mobilizações contra o então presidente Fernando Collor de Mello, acusado de corrupção. O movimento ficou conhecido como "Caras Pintadas" e provocou a renúncia de Collor para tentar evitar a cassação. Mesmo assim, diante da pressão popular o processo foi aberto e Collor acabou cassado.
Mais recentemente, estudantes passaram a utilizar o espaço para reivindicações como o acesso ao transporte público. Em 2016, representações partidárias e sindicais atuaram no local contra o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, deposta posteriormente pelo Congresso. Também foram alvos a reforma da Previdência do governo de Michel Temer e as ações e posturas do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Em 9 de janeiro deste ano, a esquina simbólica dos gaúchos acolheu mobilização em defesa da democracia e contra a tentativa de golpe de Estado articulada por bolsonaristas radicais em Brasília. O ato público teve concentração mais uma vez na encruzilhada da Andradas com a Borges. Culminou em caminhada pelas ruas centrais da Capital. Foi uma resposta contra os atos de violência e depredação do patrimônio histórico brasileiro ocorridos um dia antes no Distrito Federal.