“Nós, que sobrevivemos a tudo isso, temos que reagir para enfrentar essa guerra diária para existir!”, escreveu Xico Stockinger em seu livro Memórias, de 2002.
O artista austro-brasileiro Francisco Stockinger explicava sua obra Homens e Touros, instalada na Praça Dom Sebastião, sobre o Túnel da Conceição, no bairro Independência, em Porto Alegre. A metáfora da vida ameaçada por um fim torturante, pelo qual os animais e os companheiros de ideologia de Xico passavam na segunda metade da década de 1960, inspiraram os painéis com guerreiros e bovinos que completará 50 anos em setembro de 2022.
“O touro é o mais belo e forte dos animais, enfrenta a morte nas touradas com impetuosidade sem par”, justificou, no aniversário de 30 anos do monumento.
As cinco peças recortadas de ferro, fixadas em um grande bloco de concreto, foram restauradas pela última vez em 2015, pela Secretaria Municipal de Cultura. Elas passarão por um novo reparo a partir da segunda quinzena de julho. Nestes sete anos sem manutenção, as quatro faces imponentes na esquina da Rua Sarmento Leite com a Irmão José Otão receberam algumas dezenas de pichações. O restante da praça, no entanto, tem brinquedos e estruturas com aparente manutenção em dia.
Nesta nova manutenção, Verônica Di Benedetti, restauradora responsável pela reforma na Estátua do Laçador, contará com a companhia de Jussara Stockinger, filha do artista, para recuperar também a história do monumento em conversas abertas à comunidade.
Um dos responsáveis pela instalação original do mural, o artista Carlos Tenius, 83 anos, aguarda ansiosamente pelo início dos trabalhos que vão recuperar a obra de arte do amigo. Tenius conta que conheceu Stockinger no Instituto de Belas Artes da Universidade Federal do RS (UFRGS), no final da década de 1960, quando o austríaco já era um escultor renomado. Homens e Touros é a única escultura de grande tamanho de Xico. Uma raridade que, segundo Tenius, foi desenhada em poucos minutos com papel e lápis em frente aos arquitetos da prefeitura de Porto Alegre, em 1972.
— Ele não era muito afeito a grandes obras, dessa dimensão. Era reservado. Nesse sentido, não gostava da incomodação — relembra, destacando a importância da correta manutenção do patrimônio artístico: — Essa reforma é um desejo muito antigo. Estávamos perdendo esta obra, e a recuperação dela é importantíssima para a memória da nossa cultura.
O restauro
As chapas deverão ser tratadas com produto anticorrosivo e pintadas com tinta protetiva, que deve impedir ou pelo menos atrasar um novo processo de corrosão. A superfície de concreto será limpa e pintada com tinta acrílica na cor cinza. Os parafusos metálicos que estão corroídos serão substituídos. Uma placa indicativa com as informações da obra será instalada.
— A obra dele é muito poética, fruto da presença cultural forte que ele foi. Conheço bem o trabalho dele. O conheci, inclusive. Era de uma personalidade fortíssima também. É uma honra poder trabalhar com esse legado — destaca a restauradora Verônica Di Benedetti, que prepara o início das reformas para a segunda quinzena de julho.
Falecido em 2009, Stockinger recortou quatro painéis em chapas de ferro desenhando touros, um guerreiro a cavalo, outro guerreiro com lança e escudo, e uma figura feminina. Esses elementos são comuns na obra do artista entre as décadas de 1970 e 1990, segundo estudos mencionados pela análise feita em 2016 por um projeto de pesquisa do programa de pós-graduação da UFRGS, intitulado Conservação de Patrimônio Cultural Metálico.
Herança cultural
Quem promove o restauro é a Unimed/RS. A empresa lançou um livro contando a história de esculturas protagonistas do cenário artístico de Porto Alegre. Além disso, será promovida uma conversa entre Jussara Stockinger e o público em geral, no sábado (16), em frente ao painel. Aos 72 anos e morando em Rio Pardo, Jussara irá até o local da obra para participar do evento sobre o trabalho do pai.
As memórias da Rua Pelotas, primeiro endereço da família de origem austríaca na Capital, são repletas de cultura. Seja em conversas com o amigo da família Mario Quintana ou ajudando o pai artista na fundição de bronze em um forno improvisado, Jussara conta que cresceu participando intensamente do trabalho de Xico.
— Aprendi com ele a fazer gravura, escultura com barro, mesmo sem querer ser artista. Não sei se era um gosto dele por ensinar ou uma curiosidade minha, ou ambos, mas eu fazia — lembra Jussara, que é advogada.
Aos 14 anos, a menina viu o regime militar destituir Jânio Quadros da presidência da República e preocupar o pai. Chargista no jornal Correio do Povo, Francisco era fiel a seus princípios e não escondia sua contrariedade à ditadura. Por conta da pouca idade, a filha era mantida a uma certa distância dos encontros políticos dos quais ele participava, e afirma que nem entendia direito o risco que o pai corria por aquele posicionamento.
— Tinha um Banrisul na esquina de casa, sempre com muita polícia. O pai fazia comentários em uma rádio ali perto e a mãe comentava: “Não sei se teu pai volta hoje”. Mas eu não tinha ideia desse perigo, eu era nova, não entendia nem os termos usados pela política. Chegamos a ter gente procurada escondida lá em casa, mas ele não se envolveu em vida partidária nem deixava a família participar das discussões — detalha.
Utilizar o ferro para contornar figuras de homens e touros como personagens que passam por tortura e um fim de vida violento foi o jeito que Xico encontrou para expressar sua posição política, diz Jussara. O ambiente repressor da época, no entanto, era exclusividade da violência militar, e não tão presente como nos dias de hoje entre a população em geral, na visão dela.
— O debate da época não era tão radical quanto o de hoje. Existiam conversas, brigas, discussões, mas nem pensar matar alguém, como fizeram esses dias no Paraná. Cada um tinha suas ideias, debatiam pontos de vista, mas terminavam com um churrasco ou chope. Os guerreiros eram uma maneira de ele (Xico) se expressar contra as políticas, não contra as pessoas — explica.
Outras obras de Xico
Além dos grandes murais, Stockinger presenteou a cidade com o Monumento a Carlos Drummond de Andrade e Mario Quintana, que fica na Praça da Alfândega, no Centro, a Homenagem a Vasco Prado, que recebe os visitantes no Centro de Cultura, Arte e Lazer Lupicínio Rodrigues, na Avenida Erico Verissimo, além da Flor de Ferro, no Parque Marinha do Brasil, recentemente restaurada.