Caixas transparentes de diferentes tamanhos ocupam prateleiras até o teto da sala 231 do Laboratório de Genética Humana e Molecular da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS). São etiquetadas com um número, um QR Code e uma localização — “Cúria Metropolitana, área A/Subárea A4”, “Cúria Metropolitana, Subárea A3”. Algumas têm um adendo escrito à mão, tipo “crânio 11”.
Ali está o que sobrou do primeiro cemitério oficial da Capital, ativo de 1772 a 1850. As ossadas foram descobertas há 10 anos, em uma escavação realizada durante obras de reforma na sede administrativa da Arquidiocese de Porto Alegre, no Centro Histórico. Havia esqueletos relativamente conservados — constatou-se que eram enrolados em uma mortalha presa com alfinetes, em vez do uso de caixões —, mas também havia valas com grande quantidade de restos mortais misturados. É que, depois da transferência do cemitério da cidade para o alto da Azenha, o lugar foi aterrado para a construção de um seminário episcopal, que após se transformaria na Cúria.
Propriedade do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, as ossadas tiveram sua custódia cedida temporariamente para a PUCRS, para manutenção e estudos. Pesquisadores se debruçaram sobre elas nos últimos anos, mas estão longe de terminar o inventário. A identificação é demorada devido à degradação, já que muitas peças já perderam algumas características principais. Depois de limpar os objetos delicadamente com uma escovinha, de se certificar que é um osso humano, de separar em tipos e lateralidade (se é do lado esquerdo ou direito do corpo), tentam juntá-los.
— É quase um quebra-cabeça, ver qual se encaixa com qual — diz Catieli Gobetti Lindholz, laboratorista responsável.
Também fazem exames como tomografias computadorizadas, e detalhes que passariam batidos para quem não entende nada de anatomia acabam virando objeto de pesquisa de doutorado. A tese de Biologia Celular e Molecular de Maria Cristina Berta Sant'Anna tratou de um furo em um fêmur. Com a ajuda de especialistas do Departamento Médico Legal (DML), descobriu que se tratava de uma lesão por osteomielite (infecção no osso causada por bactérias, microbactérias ou fungos).
Hoje, é o tipo de doença que se cura com antibiótico, mas um estudo desses mostra que havia casos graves na época, ou mesmo que as pessoas podiam morrer de infecção generalizada por isso, destaca a professora da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da PUCRS e coordenadora do laboratório, Clarice Alho.
— É o primeiro elemento material verdadeiro que comprova que naquele período dos anos 1700 tinha essa bactéria circulando entre as pessoas da cidade, e o grau de estrutura médica e sanitária não podia evitar que evoluísse até fazer buraco no osso — comenta a professora.
Maria Cristina, que também tem formação em história, destaca que o objetivo ali é usar toda a informação biológica à disposição para saber mais sobre os primórdios da cidade — o cemitério data da época da fundação de Porto Alegre, há 250 anos:
— A nossa ideia é contar a história dos primeiros habitantes por meio dos ossos.
A estimativa de idade dos indivíduos pode ser descoberta por exames na arcada dentária que ainda existe em alguns crânios — pesquisa que está sendo desenvolvida pela doutora em odontologia legal e perita criminal do Departamento Médico Legal (DML) Rosane Baldasso — e a origem genética é uma das informações que se pode obter por meio do DNA das ossadas.
Doutoranda em Biologia Celular e Molecular, Camila Pivetta Cavalheiro já chegou a levar amostras para a Dinamarca para análise dos genomas. Em 2019, ela embarcou para Copenhague carregando elementos como um dente e um osso petroso (do crânio) para análise em uma universidade que é referência em estudos genéticos de DNA antigo. Ela usa técnicas que aprendeu lá para continuar os trabalhos na Capital, com a ajuda de equipamentos de sequenciamento do laboratório, que também serve à análise forense.
Apelidado de Lucia, um dos esqueletos mais bem conservados encontrados no cemitério da Cúria tem origem biogeográfica africana, por exemplo — Camila ainda investiga detalhes da sua ancestralidade. A pesquisadora também vai usar o DNA para buscar enfermidades daquela população, como tuberculose ou sífilis.
Ao mesmo tempo, segue a identificação dos ossos e fragmentos para o inventário de um dos maiores achados arqueológicos da Capital.
— Cada caixa que se abre é possibilidade de encontrar novas coisas, cada vez maiores — diz a laboratorista Catieli.