Sob a sombra de uma amoreira, em frente a um matagal repleto de sacolas de lixo, moradores da Ilha do Pavão aguardam a chegada da comida de um restaurante "da cidade", como se referem à parte de Porto Alegre no continente.
O que foi destinado a eles são as sobras de bufês, recolhidas por um criador de galinhas, gansos, patos e cachorros. Parte vai para porcos mantidos próximo às casas da comunidade. Já o que está em melhores condições preenche os baldes dos próprios vizinhos.
— É triste de ver. Às vezes vem criança com balde pedindo: "Tio Cléber, enche pra mim". Já teve um que estava passando e eu vi ele comer direto do lixo. Chamei e dei uma comida melhor — conta o dono da propriedade, ao lado dos bichos.
Cléber pediu para não ter o sobrenome divulgado. Teme perder a comida com a qual também alimenta a esposa, os filhos e a neta. Ele é um dos 19,6 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave, número que dobrou entre 2018 e 2020, segundo estudo referencial da Rede Penssan — as histórias por trás desses índices estão em reportagem especial de Fábio Schaffner publicada nesta sexta-feira (26) em GZH.
Cléber ganha pouco mais de R$ 178 por mês, ficando acima do que se determina — estatisticamente — como "linha de pobreza". Porém, 1,29 milhão de gaúchos recebem esse valor como teto, conforme dados divulgados em outubro pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE) do governo do Estado.
É uma parcela dessa população que bate palmas no acesso ao terreno de Cléber pedindo sobras de arroz, massa, carne e molho. Mas até essa comida, compartilhada com os bichos, reduziu: sem dinheiro para abastecer o velho furgão, ele dispensou um dos bares mais distantes, cortando a importante contribuição que vinha do estabelecimento.
Na tarde de quinta-feira (25), o reciclador transportou para a ilha — um dos piores índices de desenvolvimento humano (IDH) da Capital — marmitas improvisadas em vasilhas plásticas e galões de refeições rejeitadas pelos clientes dos restaurantes. Uma das cumbucas foi entregue a Raquel Alves da Fontoura, 36 anos.
— Às vezes vem um pedaço de carne ou alguma coisa que dá para usar. Mas às vezes não tem condições de comer — lamenta a mulher.
O pote serviria a mãe, de 73 anos, e três filhos que vivem com ela em um barraco. Raquel tem como fonte de renda o Bolsa Família e o que recebe com a venda de material reciclado, insumo que "cada vez paga menos", segundo a catadora. Ela se diz grata pelo auxílio de Cléber, pois nem sempre tem na despensa o mínimo para cozinhar.
— Tem momento que aperta, e sobra só uma polenta — conta.
Antes de morar na Ilha do Pavão, ela viveu um período nas ruas do bairro Partenon. A época é relembrada com certa revolta na fala, mas sem demonstrar vergonha pela situação a que acabou submetida.
— Já limpei comida do lixo, pra comer, da lixeira da lanchonete. E não tenho vergonha de dizer, não tenho vergonha de pegar comida, porque a gente precisa — finaliza.
Noêmia Severo, 54 anos, também precisou da comida dividida com os animais. A costureira tem oito filhos, mas "só seis" vivem com ela. Sobre a busca do que é compartilhado por Cléber, garante já ter perdido a conta de quantos flagrantes presenciou.
— No fim de tarde, tu vê uma fila de gente com balde, bacia, panela. Um atrás do outro, tudo para pegar a comida lá.
Na localidade, vivem 120 famílias, registradas na Associação de Moradores da Ilha do Pavão. Com média de seis a sete pessoas por residência, o total da população alcança 800 habitantes.
Ao lado da associação, fogões foram substituídos por tijolos na calçada, e galhos ajudam a formar as chamas. Para atender os que não conseguem improvisar a cozinha na rua, tampouco adquirir um botijão, é estudada a produção de um forno de barro.
— Assim, quem tem farinha pode fazer um pão, vai doando um para o outro, aprende a se virar — argumenta a presidente da associação, a pedagoga Sandra Ferreira, 52 anos.
De acordo com o padre Rudimar Dal'Asta, pároco da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, seriam necessárias 4 mil cestas básicas por mês para atender a todos.
— Mas nunca chega a isso. Eu não posso sair de mochila na rua que as pessoas pensam que eu vou distribuir ficha com senha para pegar cesta. Se me veem, já gritam pedindo algum alimento. Se marco entrega de cestas às nove da manhã, já tem gente desde as três da madrugada na fila — explica o religioso.
Dentre os motivos alegados para a queda na renda dos moradores está a maior dificuldade imposta pela prefeitura para reciclagem por quem é autônomo. Atualmente, o lixo seco só pode ser comercializado pelas unidades de triagem conveniadas com o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU). Os carrinheiros prometem manifestações contra as restrições nos próximos dias.
Em nota (leia a íntegra abaixo), a prefeitura reafirmou que o modelo é definido em lei e que mantém o diálogo, inclusive com uma reunião marcada junto ao Ministério Público do Estado, na próxima semana.
No Mario Quintana, horta é cultivada junto a valão de esgoto
Folhas de bananeira, ramos de alface e pés de aipim são parte de uma horta mantida no bairro Mario Quintana, na zona norte da Capital. Um barulho de água corrente conclui o cenário, contrapondo a urbanização dos becos com a área de cultivo. O córrego, no entanto, é um valão que deságua no Arroio Feijó, levando o esgoto até Alvorada.
A plantação é de Antônio Cândido Couto Teixeira, 62 anos, que vive no terreno logo em frente.
— Tá muito difícil comprar no supermercado. Antigamente, com cem "pila" a gente fazia um ranchão. Agora, se gasta o dobro. As verduras, se não plantar, não têm como comprar — diz.
Teixeira é natural de Caçapava do Sul, região da Campanha. Mora há 18 anos em Porto Alegre, com a esposa e os três filhos. Diariamente, a família colhe e leva para a mesa os frutos do plantio: o espaço tem também abóbora, couve e repolho, todos a menos de dois metros da água contaminada.
Caminhar pela colheita leva o visitante muito próximo a uma grande tubulação de onde saem os dejetos. A pouca distância da borda do valo e da terra arada preocupa o técnico em agroecologia pelo Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul) Rafael Quiroga Maciel, que não recomenda a ingestão de alimentos nessas condições.
— O ideal seria não plantar menos de 10 a 15 metros do valão — sugere.
Maciel justifica que a irrigação carrega consigo a contaminação da água, o que chega até as raízes das árvores ou dos vegetais rasteiros.
— Assim como os agrotóxicos ficam nas partes superficiais das plantas, existe a absorção pelas raízes. Acaba sendo sistêmica e segue na cadeia alimentar — complementa.
O especialista sugere ferver o que foi colhido, para reduzir o impacto na saúde. Inclui outra orientação: utilizar caixotes de plástico ou de madeira no semeio, sem contato da raiz diretamente com o solo.
Mesmo com as contraindicações, o responsável pelos hortifrutigranjeiros precisou colocar um cadeado no portão, a fim de evitar furtos.
— Se a pessoa pede eu dou, né. Eu não sei ser ruim — garante.
Confira a nota da prefeitura na íntegra:
"A prefeitura de Porto Alegre informa que, de acordo com a Lei Complementar 728/2014, que institui o Código de Limpeza Urbana, “a coleta regular, o transporte e a destinação do resíduo sólido reciclável são de exclusiva competência do DMLU” (Art.15). Com isso, a Coleta Seletiva de Porto Alegre abrange todos os bairros da cidade para realizar o recolhimento dos resíduos sólidos descartados por moradores e empresas.
Além de ser uma competência exclusiva do município, que visa a separação de destinação correta de resíduos, a Coleta Seletiva tem uma função social importante para centenas de moradores da Capital. Grande parte do material recolhido é destinado para 16 as Unidades de Triagem (UTs) cadastradas pela prefeitura. Nestes locais, é feita a separação por tipo de material, enfardamento e venda para reciclagem, gerando emprego e renda para cerca de 600 trabalhadores. As associações/cooperativas que gerem as unidades contratadas pelo DMLU dividem os valores resultantes da comercialização entre seus integrantes.
Das 1.126 toneladas de resíduos diariamente pelo DMLU, 51 toneladas são via coleta seletiva, o que representa 4% do total recolhido por dia. Neste momento, a prefeitura de Porto Alegre está focada em aumentar a quantidade e a qualidade dos materiais recicláveis. Para isso, estão sendo realizadas ações de conscientização e busca ativa em grandes geradores de resíduos sólidos, como estabelecimentos comerciais. Com 31 anos de Coleta Seletiva, Porto Alegre já foi referência nesta área e agora, a meta é aprimorar e qualificar o recolhimento de resíduos.
A prefeitura também está em tratativas com os recicladores sobre a coleta de resíduos em Porto Alegre. O DMLU já recebeu a documentação dos informais (como quantitativos de resíduos coletados, região de atuação, número de pessoas envolvidas no processo e modalidade de coleta) e está estudando os dados para montar uma proposta de inseri-los no sistema regular de coleta de resíduos recicláveis. A SMSurb montou uma força-tarefa para tratar com os coordenadores do movimento e ainda aguarda algumas documentações jurídicas pendentes.
Na próxima segunda-feira, 29, haverá uma reunião no Ministério Público para tratar da situação dos recicladores informais. Estarão presentes a Defensoria Pública, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, Secretaria Municipal de Governança, Departamento Municipal de Limpeza Urbana e Procuradoria Geral do Município.
Reforçamos a postura de diálogo adotada pela gestão atual, mas há a necessidade de regramento nas coletas da cidade. A separação correta de resíduos é uma questão sustentável, econômica e social."