O que o morador da Grande Porto Alegre já percebe pelo número de pedintes e pessoas em situação de vulnerabilidade nas ruas, pelo desemprego e pelo encolhimento da renda foi traduzido em números em uma pesquisa. Os dados do Boletim Desigualdade nas Metrópoles, uma parceria entre PUCRS, Observatório das Metrópoles e RedODSAL, mostram que a pandemia foi ruim para todos, mas teve efeitos brutais para os mais pobres.
A pesquisa revela que a quantidade de pessoas vivendo em domicílios com renda per capita de trabalho menor que um quarto do salário mínimo na região metropolitana de Porto Alegre passou de 899.092 para 1.182.172 em um ano. Ou seja, mais de 280 mil pessoas tiveram seu patamar de renda reduzido durante a pandemia.
Em percentuais, a Região Metropolitana tinha 20% da população vivendo com essa renda em janeiro, fevereiro e março de 2020 — período em que os reflexos da pandemia quase inexistiam — e alcançou 28% em igual período de 2021, o maior percentual da série histórica, acompanhada desde 2012.
O salto fez da Grande Porto Alegre a segunda região metropolitana do país onde, proporcionalmente, mais cresceu o número de pessoas com renda abaixo de um quarto de salário mínimo, com aumento de 36,8% entre 2020 e 2021, atrás apenas da região metropolitana de Goiânia, que registrou acréscimo de 45,8%.
Um dos coordenadores do Boletim Desigualdade nas Metrópoles e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS, André Salata afirma que o cenário se deve a uma combinação negativa da queda da renda média da população com o aumento da desigualdade, ou seja, distribuição de recursos de maneira menos igualitária. A junção desses dois fatores reflete necessariamente em uma parcela de 280 mil pessoas caindo para estratos de rendimentos mais baixos.
— É um numero extremamente alto, que corresponde a aproximadamente 8% da população da metrópole. O que a gente consegue mostrar, depois de um ano de pandemia, são os efeitos muito negativos dela. Uma queda na renda média muito grande. E a redução na renda foi proporcionalmente maior para quem está na base da pirâmide — diz.
Moradora da Capital está há seis meses sem cozinhar carne
Esse impacto negativo já faz parte da rotina da educadora infantil Patricia Vargas dos Santos, 38 anos. Até o começo da pandemia, ela trabalhava em uma creche e o marido era promotor de vendas. Ambos perderam o emprego e hoje recorrem à reciclagem para sustentar os dois filhos, de 11 e nove anos. A família do Morro da Polícia, na zona leste de Porto Alegre, viu sua renda encolher. Patricia tinha salário de R$ 1,8 mil com carteira assinada e agora tira no máximo R$ 300 por mês. No comunidade, conta com a ajuda de doação de roupas e alimentos da Associação das Mulheres Unidas pela Esperança (Amue).
— A pandemia cada vez nos afunda mais. A gente já não sabe o que vai fazer, não tem mais recurso, não tem de onde tirar. Com a pandemia, não tem como fazer curso para se atualizar, não tem onde procurar emprego porque muitas portas estão fechadas e vão continuar fechadas. A gente tem que fazer uma opção: ou come ou se veste.
Antes da pandemia podia comprar um guisado, uma verdura, um iogurte, uma carne, uma galinha. Hoje, estamos com a polenta, o arroz e o feijão. Faz seis meses que não cozinho carne. Uso ovo e salsicha, pico no arroz ou jogo sobre a polenta.
PATRICIA VARGAS DOS SANTOS
Educadora infantil
Patricia sai de casa de madrugada para catar latinhas e garrafas pet três vezes por semana por quatro horas. Também faz serviços eventuais de faxina. Com a pouca renda, nem sempre consegue pagar em torno de R$ 100 por um botijão de gás e conta que, na falta do combustível, cozinha em um espiriteira, um fogareiro improvisado em uma lata de sardinha e pedaços de madeira.
— Antes da pandemia podia comprar um guisado, uma verdura, um iogurte, uma carne, uma galinha. Hoje, estamos com a polenta, o arroz e o feijão. Faz seis meses que não cozinho carne. Uso ovo e salsicha, pico no arroz ou jogo sobre a polenta. A pandemia tirou tudo que a gente tinha e damos graças a Deus porque temos saúde. O que eu mais gostaria de ter era um emprego e a renda certa no final do mês para dar um prato de comida decente e uma fruta para o meus filhos comerem — descreve.
Renda dos mais pobres caiu 41% em um ano
Os números apontam que, entre os 40% mais pobres na região metropolitana de Porto Alegre, o rendimento per capita do trabalho caiu 41% entre o 1º trimestre de 2020 e o 1º trimestre de 2021. A pessoa que até março do ano passado tinha renda média de R$ 258,66 viu seu rendimento cair para R$ 152,56 no mesmo período deste ano.
Para os 50% de renda intermediária, a queda foi de 9%. E para o nível de renda dos 10% do topo da distribuição, a queda foi de 10%. Isso mostra que a redução de rendimento ocorreu em todos os estratos de renda, mas foi mais abrupta entre os mais pobres.
— A crise foi ruim para todo mundo, mas quem está mais embaixo perdeu muito mais. No começo de 2020, os 10% mais ricos da metrópole de Porto Alegre ganhavam 27 vezes mais que os mais pobres, agora é 42 vezes mais. Portanto, hoje a metrópole gaúcha é muito mais desigual do que era no primeiro trimestre de 2020, antes da pandemia — diz Salata.
A crise foi ruim para todo mundo, mas quem está mais embaixo perdeu muito mais. No começo de 2020, os 10% mais ricos da metrópole de Porto Alegre ganhavam 27 vezes mais que os mais pobres, agora é 42 vezes mais. Portanto, hoje a metrópole gaúcha é muito mais desigual do que era no primeiro trimestre de 2020, antes da pandemia.
ANDRÉ SALATA
Um dos coordenadores do Boletim Desigualdade nas Metrópoles e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS
Dentro do escopo da renda do trabalho, não estão incluídos rendimentos de auxilio emergencial, Bolsa Família, previdência ou seguro desemprego. É unicamente o rendimento com origem no trabalho — que compõe mais de 70% da renda dos domicílios brasileiros — de todos que estão no mercado, desde empresário que retira uma parte do dinheiro da empresa para seu sustento até a pessoa que tem carrocinha de cachorro quente na rua, incluindo quem divide o domicílio com ele. Por isso, os dados refletem a dinâmica do mercado de trabalho, com um retrato de antes e depois da crise do coronavírus.
O nível de desigualdade da renda do trabalho na região também foi o maior em todo o período analisado. Os dados mostram que, no primeiro trimestre de 2021, a média móvel do coeficiente de Gini na região metropolitana de Porto Alegre, indicador que mede a desigualdade de rendimentos do trabalho de 0 a 1 (quanto mais alto o valor, maior a desigualdade), atingiu seu maior valor na série histórica, iniciada em 2012, chegando a 0,631. Um ano atrás, no primeiro trimestre de 2020, essa média do Gini era de 0,601. Nas regiões metropolitanas de Curitiba e Florianópolis a desigualdade também aumentou, chegando a 0,585 e 0,593, respectivamente.
— Norte e Nordeste são regiões sabidamente mais desiguais. Estruturalmente, o Sul tende a ser a região menos desigual do país, mas ainda assim com desigualdade relevante. Entre as três regiões metropolitanas do Sul, Porto Alegre é historicamente a mais desigual, o que tem a ver com sua estrutura econômica e de oportunidades limitadas para pessoas com menos qualificação. Isso contribui para que o rendimento seja menor e a desigualdade, maior — explica o professor.
O caminho para atenuar o efeitos da pandemia na classe mais pobre passa, na leitura do professor da PUCRS, pela continuidade do pagamento do auxílio emergencial pelo governo federal, já que os sinais de crescimento econômico ainda não se refletem no mercado de trabalho. Apesar disso, Salata considera que ainda é difícil prever quanto tempo vai levar para a renda dos mais pobres voltar a patamares melhores:
— Estamos passando por um cenário que nunca vivemos. No segundo semestre de 2021, o auxílio emergencial será fundamental. Até que a renda do trabalho possa se recuperar e criar mais oportunidades e, com isso, o mercado possa voltar a distribuir recursos como no período pré-pandemia, essas políticas do auxilio emergencial são extremamente necessárias. Até então esta ainda é a principal medida de combate aos efeitos sociais da pandemia no Brasil.