De acordo com o urbanista Alain Bertaud, muito se perde em produtividade e relações humanas com o distanciamento social. Por outro lado, a expansão das aulas virtuais propiciou que o francês radicado em Nova York seja um dos nomes de peso entre os docentes do MBA Cidades Responsivas, iniciado neste mês. O curso remoto é organizado em Porto Alegre em parceria pela Escola Livre de Arquitetura (ELA), a empresa de desenvolvimento imobiliário OSPA e a instituição de ensino IMED.
Aos 81 anos, Bertaud já foi urbanista chefe do Banco Mundial. Após trabalhar em metrópoles da Tailândia ao Haiti, passando por Argélia, Iêmen e El Salvador, ele acredita que o excesso de regulamentação impede as cidades de testarem soluções para os seus problemas. Em vez de zoneamentos e planos diretores, propõe o uso de indicadores para alcançar essas soluções. Nesta conversa realizada por videoconferência, defende uma Porto Alegre mais agradável, flexível e receptiva para resolver questões urbanísticas que se agravaram na pandemia.
Porto Alegre, assim como outras metrópoles brasileiras, vivenciou um período de crescimento no início dos anos 2000, mas desde meados da década passada enfrenta uma crise econômica que tende a se prolongar, agora, com a pandemia. De que forma uma cidade pode se desenvolver em um contexto macroeconômico desfavorável?
A vida de uma cidade é seus habitantes. A única situação em que acredito que uma cidade está com problemas sérios é quando seus habitantes estão indo embora, como no caso de Detroit, há cerca 10 anos (em razão da decadência da indústria automotiva local). Se ainda estão aí, esses habitantes têm ideias e atividades. É claro que haveria mais se houvesse investimentos fluindo. Uma solução possível é olhar para os impeditivos. Mesmo se houver poucos investimentos, você ainda pode destravar impeditivos. Estou falando de regulamentação territorial e também da infraestrutura de transporte, que pode sempre funcionar melhor sem necessariamente mais investimento. Você deve aumentar a produtividade das pessoas que já estão na cidade focando em resolver os problemas que elas já enfrentam.
É curioso o senhor falar sobre debandada de habitantes. Em 2018, a cidade lançou o Pacto Alegre, iniciativa para tentar torná-la um polo de inovação. Um dos problemas apontados na origem do projeto foi a chamada “fuga de cérebros”. Porto Alegre vem perdendo jovens promissores em busca de melhores oportunidades de carreira. Como manter essas pessoas?
No caso de cidades maiores, como parece ser a questão, tornar a cidade mais agradável e melhorar seu ambiente é estratégico para manter jovens adultos. Precisa haver uma variedade de lugares para ir, de coisas para fazer. Deixe-me dar um exemplo. Há alguns anos trabalhei para uma cidade de tamanho mediano no oeste da China especializada na fabricação de telas de TV. Eles se deram conta de que, se quisessem expandir a produção, precisariam de muito mais engenheiros. Porém, em todo o país os engenheiros se formam e procuram cidades grandes, como Xangai ou Pequim. O prefeito foi a faculdades de Engenharia e perguntou o que eles buscariam ao mudar de cidade, após a formatura. As principais respostas não tinham a ver com salário ou oportunidades de emprego. Era a cidade ter espaços urbanos agradáveis e boas escolas para seus filhos, duas medidas não necessariamente caras. Sobre educação, uma solução mais barata do que qualquer obra é pagar bem por bons professores. Nessa cidade, a prefeitura transformou uma área industrial abandonada banhada pelo rio em área de lazer, com barcos e ciclovias. Anos mais tarde, havia candidatos para as vagas estratégicas de engenharia. Com mais engenheiros, a cidade se desenvolveu e trabalhadores de outras áreas chegaram.
Porto Alegre vem investindo na sua orla também. O senhor acredita que isso possa ter um resultado mais à frente, portanto.
Pela lógica, sim. Hoje, mais do que nunca, apostar em uma cidade agradável tem sido importante para atrair jovens adultos. O que prefeitos não se dão conta, às vezes, é que cidades competem entre si. Isso é especialmente importante agora, já que muitos podem trabalhar de casa. As empresas têm se dividido: parte da equipe está em uma cidade, parte, em outra, independentemente de onde a companhia está sediada. O jovem profissional vai escolher baseado nas horas em que não trabalha.
Algo que o senhor salienta no seu livro Order Without Design: How Markets Shape Cities (MIT Press, 2018) é a importância de uma cidade acolher bem seus imigrantes, especialmente os de baixa renda. Porto Alegre vem recebendo um fluxo grande de pessoas de Haiti, Senegal e Venezuela. Que dicas daria para integrá-los melhor à cidade?
O approach correto à questão da imigração é tratá-la como um processo natural e bem-vindo para o crescimento da cidade. Isso se verificou na Europa, no Japão e em breve vai acontecer na China, porque a população está envelhecendo. Mas a forma mais comum como as cidades costumam lidar com isso é: a pessoa chegou do Senegal, vou dar a ela um abrigo na igreja, mantimentos e comida. Ela fica feliz e era isso, fiz o meu trabalho. O que você deveria considerar desde o início é que ele pode fazer parte da sua força de trabalho. Se você tem uma empresa e contrata alguém, você vai passar dois ou três meses treinando esses novos funcionários para garantir que eles se sintam integrados. Se ele é estrangeiro, isso inclui aulas da sua língua. Com o imigrante, a cidade deve ter a mesma preocupação. Quanto antes ele for integrado, mais útil ele vai ser no desenvolvimento e menos problemática a presença dele será para a administração pública.
E como ultrapassar as barreiras culturais entre a comunidade local e os imigrantes? como Evitar que se formem guetos, ou que os imigrantes se limitam a apenas uma atividade, como o caso das pessoas que se tornam majoritariamente vendedores ambulantes?
Quanto antes um imigrante for integrado, mais útil ele vai ser no desenvolvimento e menos problemática a presença dele será para a administração pública. deixando claro que isso não é caridade, mas investimento.
ALAIN BERTAUD
Urbanista
De duas formas: é preciso ter claro e deixar claro o que a cidade espera desse imigrante. Isso não significa mudar a cultura dele. Eu sou francês e vou continuar comendo meu croissant, mas alguém tem de me dizer que naquela cidade é importante chegar no horário, socializar com as pessoas, como se comportar entre homens e mulheres, coisas que você pode fazer para ser bem aceito em Porto Alegre. Um bom medidor de desenvolvimento de uma cidade é esse: quanto tempo desde a chegada de um imigrante ele está trabalhando em um emprego de verdade, morando em uma casa de verdade. Se você não se preocupa com isso, o tempo pode ser até duas gerações depois. Deixando claro que isso não é uma questão de caridade, mas de investimento. Investimento na força de trabalho.
E quanto ao receio da população local de concorrência a vagas de emprego, há como evitar?
Esse é outro erro. Achar que o desenvolvimento de uma cidade é um jogo com um número limitado de vencedores. Quando eu cresci, na França, havia o debate se as mulheres deveriam trabalhar, porque elas competiriam com os homens. É uma insanidade, porque fica mais rico precisamente quem tem mais gente e mais diversidade na sua força de trabalho. Se você se preocupa que imigrantes vão tomar o seu trabalho, francamente, está preso ao mesmo debate sem sentido.
Outro ponto importante do seu trabalho é a defesa de diferentes escalas de governo dentro da cidade. Porto Alegre há mais de 30 anos se tornou conhecida pelo Orçamento Participativo, em que as comunidades decidiam parte da aplicação dos recursos públicos. Decisões diretas sobre a aplicação de recursos públicos é um bom caminho?
A cidade enfrenta questões que muitas vezes as pessoas não fazem ideia. por isso, ter indicadores e compartilhá-los com a comunidade é tão importante quanto chamá-la para tomar decisões.
ALAIN BERTAUD
Urbanista
Não tenho familiaridade com a ferramenta, mas tenho um pouco de resistência entre algo que me faça optar, por exemplo, entre uma escola e uma ponte. Isso é algo que trabalho na última parte do meu livro. Acho que esse tipo de decisão precisa sempre partir de indicadores. Se o principal problema de uma comunidade é que ela precisa chegar ao trabalho em 20 minutos e demora duas horas, o investimento prioritário tem de ser a ponte. Se o problema é que naquela comunidade as crianças não terminam o Ensino Médio, pode ser melhorar a escola. Deixar decisões capitais para a comunidade pode ser injusto se ela não decidir a partir de indicadores. Do contrário, as pessoas decidem atacar os problemas com os quais têm mais familiaridade, não necessariamente os mais importantes. A cidade enfrenta questões que muitas vezes as pessoas não fazem ideia. Por isso, ter indicadores e compartilhá-los com a comunidade é tão importante quanto chamá-la para tomar decisões. A obra da prefeitura não pode ser o objetivo em si, ela é um meio de se solucionar um problema que precisa estar claro.
Um problema enfrentado por Porto Alegre é a dificuldade dos governos de aplicar medidas impopulares, de benefício a longo prazo. Há anos, por exemplo, se debate a aplicação de taxas por circulação para enfrentar o problema dos congestionamentos. É possível vender melhor remédios amargos?
Não é apenas Porto Alegre. Jean-Claude Juncker (ex-presidente da Comissão Europeia) costuma dizer que os políticos sabem a coisa certa a ser feita, só não sabem como se reeleger depois de fazê-la (risos). Mas veja bem: um dos lugares que praticam essa taxa de congestionamento, por exemplo, da forma mais avançada, é Singapura, e é interessante mostrar como ela atacou esse problema. Claro que há muita tecnologia envolvida, mas se trata de um governo que tem por hábito divulgar indicadores. Eles não dizem “nós vamos reduzir o trânsito cobrando esta taxa”, eles dizem “a gente vai estabelecer uma taxa que garanta que você nunca vá trafegar a menos de 25 quilômetros por hora”. Quando as câmeras percebem que o trânsito aumenta, a taxa automaticamente vai ficando mais alta. Sabendo disso, o motorista verifica a taxa e só sai no horário de pico em caso de real necessidade. Percebe a diferença? O Estado não cobrou uma taxa para resolver um problema, ele resolveu e vendeu a manutenção da solução. Mas há um problema central aí: o governo precisa ter credibilidade para implementar algo assim, e muitos governos não têm credibilidade alguma.
Essa questão conversa com o problema da crise do transporte público. Embora o discurso da sustentabilidade tenha encorpado e haja os congestionamentos, por aqui, usar o carro particular ou optar por uma viagem por aplicativo é mais prático no dia a dia do que o ônibus. Como o transporte público pode competir?
O carro seria um meio de transporte perfeito se não consumisse uma quantidade enorme de recursos de todas as formas. Mesmo cidades bastante congestionadas, como Nova York ou Paris, se você pegar o seu carro ou chamar um por aplicativo, geralmente você chega ao destino mais rápido do que de transporte público. Isso é um desafio. Já o ônibus é contraditório em sua origem: é bom que a estação seja o mais próximo possível da minha casa, mas quanto mais estações pelo caminho, mais demora a minha viagem. Ainda assim, eu acredito que estamos à beira de uma revolução, graças aos veículos de compartilhamento. Não sei se você conhece um pequeno triciclo elétrico que a Toyota desenvolveu e está testando no Japão e na França (chama-se i-Road e foi apresentado em 2013). É uma espécie de motocicleta, mas coberta, estável e sem a necessidade de colocar os pés no chão ao parar, o que a torna amigável a pessoas idosas. Esse veículo não é feito para ser comprado, você encontra em estações de metrô e paga pelo uso. Acho que esse é um caminho pelo qual podemos ir. Tudo que obedeça a lógica de integrar modais tende a crescer, pois agora é possível mensurar oferta e demanda em tempo real, algo impossível há 20 anos. Haverá erros e acertos, mas é um ajuste a ser feito passo a passo.
A pandemia trouxe tendências urbanísticas preocupantes para o futuro de Porto Alegre, especialmente no seu Centro Histórico. Com mais gente em home office, os escritórios centrais se esvaziaram e as pessoas voltaram a procurar residências maiores e mais afastadas. Somado a isso, comércios de rua vendem menos. Como a cidade pode enfrentar esses problemas?
Abandonar ou não o home office é uma decisão entre empregados e empregadores. Não há nada a planejar aqui. Mas há a escolha de trabalhar de casa em Porto Alegre ou em outro lugar. A cidade passa a competir ainda mais por jovens talentos. Urbanisticamente, o que se deve fazer é incentivar ambientes múltiplos ou de rápida transformação. A cidade deve ser ainda mais flexível em questões de zoneamento. É algo do século 19 determinar que uma região tenha uma livraria ou uma academia. Ou proibir os dois no mesmo espaço. Deve-se proporcionar mais flexibilidade e aleatoriedade. Relaxar regramentos não quer dizer que você é contra regulamentação dos negócios, quer dizer que você está dando às pessoas a liberdade de testar coisas novas por conta própria. Se um matadouro for parar ao lado de uma escola infantil, você pode intervir. Mas algo me leva a crer que esses dois negócios não vão querer estar próximos.
O desenvolvimento da cidade fica comprometido se houver menos encontros entre seus habitantes?
Penso que a aleatoriedade dos encontros é indispensável para a produtividade e até para as relações humanas. Nos primeiros seis meses que tivemos de abdicar da vida em comunidade, muitos acharam maravilhoso: posso ler o jornal no meio do trabalho, tirar um cochilo. Mas, em certo ponto, vem a necessidade do encontro. Eu, por exemplo. Sou um imigrante nos EUA e conheci todos os meus amigos por meio do trabalho. São colegas, ex-colegas ou pessoas que conheci por meio de colegas. E não é apenas para fazer amizades. No ambiente de trabalho, você reconhece pessoas com habilidades que você não tem para fazer parcerias, ou visualiza trabalhos diferentes que poderia fazer. Isso estimula que surjam coisas novas. Estou falando de todos os tipos de trabalhadores. Estou confiante que isso voltará a acontecer.