O contraste da zona sul de Porto Alegre é evidente nos primeiros metros da Rua Wlanir Porto: de chão batido, o beco tem de um lado a vista de imensas rochas no Guaíba, e o monte da Ponta Grossa preserva ancoradouros de barcos luxuosos. No oposto, se ergue uma vila de casebres na encosta do Morro dos Sargentos. Em um deles vive Melânia Perez, 56 anos.
Recicladora desde a infância, a porto-alegrense sai de casa antes do amanhecer e caminha até o “vizinho” rico, o bairro de Ipanema. O horário, afirma, garante as melhores coletas de latas e outros materiais descartados. A concorrência das horas seguintes pode retirar dela itens valiosos, levando-se em conta os parcos centavos recebidos pelo comércio de reciclados.
Melânia não tem luxo. Dispensa o café da manhã, almoça na rua e janta o que tem. Nunca, em toda a vida, teve uma refeição preparada com esmero, ou qualquer prato elaborado. Até 2021, mantinha um sonho apenas no imaginário: comer capeletti.
– Eu disse para a dona Patrícia que tinha vontade de comer uma sopa de capeletti, mas nunca sobra dinheiro. É caro, né?
“Dona Patrícia”, citada pela recicladora, é Patrícia Parra Stein, 47 anos, moradora de Ipanema. Coordenadora da ONG Cozinheiros do Bem, afirma conhecer Melânia há mais de 30 anos.
– Ela vinha a Ipanema na casa da minha vó, e sempre batia na porta para pedir um cafezinho, alguma comida. Se oferecia para limpar o pátio, a casa, ajudar em qualquer coisa que rendesse algum valor - relembra Patrícia.
No dia em que ouviu de Melânia o desejo de comer a sopa tradicional no inverno gaúcho, Patrícia se compadeceu. Incluiu dezenas de pacotes da massa nas doações que já tinha por hábito distribuir, e realizou o singelo sonho.
– Ela é uma pessoa muito humilde, e quando dou uma maior quantidade de algo, como roupa ou comida, ela sempre me fala que vai ajudar o pessoal da comunidade. Muitas vezes, tem o carrinho lotado e vai carregando até a Serraria. Se não estiver chovendo, ela vem, sempre, e sempre fica muito agradecida, e abençoa a gente pelas doações - complementa.
Compartilhar
Com tanta comida entregue - mais de 40 embalagens de 500 gramas cada -, o carrinho de reciclagem ficou lotado. Ao chegar em casa com o rancho, não teve dúvida: distribuiu o capeletti para as filhas e a moradores do entorno.
– Era muita comida - sorri Melânia, largamente.
Na manhã desta quarta-feira (7), a reportagem de GZH visitou a casa - a Vila dos Sargentos fica no extremo do bairro Serraria. Alugado, o barraco custa R$ 100 por mês, valor que por vezes não é vencido em dia. A solidariedade do proprietário - um senhor que mora no mesmo beco - permite que ela jogue os aluguéis para a frente.
Na dispensa de Melânia não havia mais nenhum pacote do capeletti.
– Eu dei a massa para um monte de gente, porque sei que Deus me devolve mais. Aqui é muito bom, todo mundo se ajuda - afirma.
O imóvel tem um tapume no lugar do portão. Na porta, uma imagem de Nossa Senhora Aparecida foi pendurada, e uma série de pequenos enfeites coloridos trazem um ar de acolhimento ao lar.
Boa parte da família nasceu, cresceu e ainda mora na Vila dos Sargentos. A mãe de Melânia sobrevive com um trabalho semelhante, do que foi colocado no lixo. A filha, Carla Pérez, 33 anos, fala com orgulho da luta:
– Ela é muito guerreira. Trabalha desde os 9 anos de idade, anda toda a zona sul e está sempre ajudando os outros.
O capeletti foi preparado com cebola, tomate e molho vermelho.
– Comi dois pratos, estava muito bom. Vontade de comer mais - garante, de novo com um grande sorriso por trás da máscara.