O argentino Abraham Ponce voltou a um dos cruzamentos mais conhecidos do Centro Histórico de Porto Alegre nesta segunda-feira (22): a Esquina Democrática, encontro da Avenida Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas. O artista de 48 anos deixou em casa a peruca, as vestes brancas e a maquiagem.
– Se eu me vestir de anjo as pessoas me abraçam, e eu não posso fazer isso. Minha responsabilidade com o público é não pegar ou transmitir o vírus - define, com mágoa na voz devido à incapacidade de distribuir carinho.
Desde o início da pandemia de coronavírus, o Anjo da Esquina Democrática decidiu se afastar das ruas. Além do risco à própria saúde, argumenta que o toque, a entrega de flores e até mesmo o dinheiro entregue pela plateia são temerários neste momento. A rotina de Abraham Ponce neste um ano longe das ruas foi contada pelo artista gráfico Pablito Aguiar, em uma publicação para a revista Parêntese. O desejo pela preservação da vida, com o aspecto financeiro em segundo plano, é ressaltado em detalhes por meio de uma história em quadrinhos.
Ponce costumava subir em uma banqueta alta, permanecendo imóvel até que alguém depositasse alguma contribuição. Quando admirado, devolvia a saudação e distribuía o que diz ser seu ato principal: carinho. A atividade iniciada há 23 anos havia deixado a Capital somente durante os meses de verão. Nos últimos 12 meses, sequer a praia teve sua benção.
Sem renda, Ponce acumulou dívidas. A conta de telefone foi paga a partir de doações. O sustento da casa, bancado pelo companheiro, professor da rede estadual.
– Está muito difícil. A gente paga aluguel, a luz e o salário já acaba. Mas eu prefiro comer arroz e ovo do que arriscar a vida dos outros - afirma.
Logo nos primeiros minutos de conversa com a reportagem de GZH, às 7h, ele demonstrou alegria ao cumprimentar à distância uma dezena de pessoas:
– Oi, tudo bem? – gritou para a vendedora de pão de queijo.
– Como está seu filho? – perguntou para um lojista.
Mas não segurou o choro ao se dizer sem notícias de parte dos amigos.
– Muitos eram idosos, e eu soube que morreram. Alguns, não vi mais, nem quando eu passo rápido por aqui. Sinto falta das crianças também, porque elas dão muito carinho - complementa.
Na semana em que Porto Alegre comemora 249 anos, o gaúcho de coração oferece um presente: simbolicamente, entrega a tiara de flores aos profissionais de saúde do município, homenagem estendida a professores e cientistas, diz. Como desejo, pede que a vacina chegue logo para toda a população.
Enquanto era entrevistado ao vivo na Rádio Gaúcha, viu uma pequena plateia se formar ao redor, ouvintes escorados nas paredes do comércio de rua.
– Essa criatura é indescritível - diz Darci Davila, 72 anos.
Morador do Centro desde os anos 2000, o aposentado aponta para a janela de um apartamento no mesmo quarteirão que o argentino adotou como palco. A amizade entre ambos reservava conversas diárias, e hoje a saudade é mútua.
Alternativas para que seguisse nas ruas foram estudadas: um acrílico de proteção foi o mais sugerido, porém, rechaçado de imediato.
– Eu gosto de trocar carinho. As crianças me cercam, me abraçam, e eu não consigo ver e não abraçar. Sou uma pessoa que gosta de troca de carinho - reafirma.
O Pix do companheiro, Marcos Santos Dorneles, está sendo divulgado entre admiradores. Uma forma de ajudá-los a manter os custos enquanto Ponce não pode voltar à Esquina Democrática. O número é o celular: 51 999587573.