Em uma entrevista veiculada no programa Bom Dia Rio Grande em 21 de março de 2016, o músico Charles Busker, que havia oito anos se apresentava no centro de Porto Alegre, foi questionado pelo então repórter Manoel Soares sobre qual seria o palco que o faria deixar a Rua da Praia em definitivo. Respondeu sem pestanejar:
- Se eu pudesse ficar tocando em casa, ganhando dinheiro, vendendo meu peixe com minha mulher, minha filha e meus cachorros, eu ficava. Como não pode, venho para a minha segunda casa, que é a Rua da Praia - disse o cantor, conhecido por interpretar clássicos do rock e do blues, acompanhado de um violão e uma gaita de boca.
Entusiasta da vida simples do interior - natural de Canguçu, vivia em um sítio até mudar-se para a Capital, nos anos 2000 - , Busker não imaginava que o futuro idealizado na entrevista viria tão cedo, por caminhos tortos e em uma data emblemática. Exatos quatro anos depois da gravação, em março de 2020, ele, a esposa, Letícia Cardoso, os três filhos e uma cachorra chegavam ao imóvel rural onde o músico de 39 anos passou a infância e parte da vida adulta. Lá permanecem até hoje.
Busker e Letícia, que também é sua produtora, já tinham planos de levar uma vida mais calma quando, nas primeiras semanas de março daquele ano, seus shows em bares da Região Metropolitana começaram a ser cancelados. Motivados pelas incertezas que chegavam com a pandemia de coronavírus e com a sensação de que a vida poderia demorar a voltar ao normal, resolveram pegar a estrada rumo ao Interior depois de sua última apresentação, em um bar do bairro Menino Deus.
- Meu último show foi no dia 13 de março. Uma semana depois, pegamos o dinheiro que a gente tinha, colocamos gasolina na kombi, compramos um rancho no mercado e viemos para cá. A gente tinha a ideia de, em algum dia, viver no interior. A pandemia acelerou o processo - recorda.
Ao chegar no local, onde também vive a mãe do músico, de 78 anos, o casal percebeu que a empreitada seria mais árdua do que imaginavam. Sem internet, viram-se impossibilitados de, como outros músicos, fazer apresentações virtuais e atualizar as redes sociais com conteúdo que mantivesse a atenção do público e permitisse a manutenção da renda familiar.
Quase sem reservas financeiras e preocupados com o futuro, fizeram um vídeo curto apelando aos fãs que adquirissem gravações de Busker disponibilizadas em mp3. O conteúdo de cerca de um minuto, postado no Instagram no fim daquele mês, levou duas horas para ser carregado, com o sinal de internet que conseguiram captar na estrada.
Para a surpresa da família, a reação do público foi imediata. Diversas pessoas procuraram Charles e Letícia para contribuir, muitas delas sem exigir nada em contrapartida.
- Teve gente que pagou antecipado por shows que um dia eu vou ter que fazer. A solidariedade das pessoas é uma coisa que não tenho palavras para descrever... É como se uma grande família tivesse adotado a gente. Não tem nada que a gente faça que vai conseguir retribuir tudo o que fizeram - diz o músico, que se deslocou até a estrada mais próxima para atender à ligação da reportagem.
Aos poucos, Charles e Letícia conseguiram organizar a vida interiorana para viabilizar o trabalho a distância: instalaram internet via satélite e, no fim do ano, também com a contribuição de amigos, adquiriram um gerador para driblar os episódios de falta de luz que atrapalharam algumas apresentações virtuais. Passaram a realizar lives mensais com patrocínio na página de Busker no Facebook, e, neste ano, começaram a trabalhar juntos em composições próprias.
As mudanças tiveram reflexos na estética das redes sociais do cantor, administradas por Letícia. No perfil do Instagram, as fotos das apresentações no meio da muvuca do Centro Histórico, com alta circulação de pessoas, deram lugar a imagens bucólicas do músico e das crianças em meio à natureza, com direito a silhuetas no pôr do sol.
O ambiente rural também trouxe novos hábitos. Começaram a cultivar uma horta e a plantar batatas, atividade que também serviu de entretenimento para a filha Scarlett, seis anos, e para os gêmeos George e John, três anos.
Na avaliação do músico, a imprevisibilidade imposta pela pandemia também ensinou a família a viver um dia de cada vez, usufruindo dos pequenos momentos e vivendo em um ritmo mais tranquilo do que aquele ao qual se habituaram na cidade.
- Agora nada mais nos espanta. A gente começou a viver de semana em semana, tiramos um pouco aquela ansiedade de ter planos. Estamos num carpe diem (expressão em latim que fala sobre desfrutar o presente). Eu não escrevo mais na agenda de caneta, agora só escrevo a lápis - brincou.
Embora não tenham planos de voltar a viver na cidade, Charles aguarda pela melhora das condições sanitárias para retomar as apresentações em bares da Capital - no meio do ano, com as regras flexibilizadas, chegou a fazer alguns shows. Também não descarta o retorno à via onde se tornou conhecido depois de largar o emprego como técnico em informática para viver da arte. Nem que seja para a despedida suprimida pelas condições sanitárias.
- Eu nem lembro a última vez que toquei (na Praça da Alfândega). Tenho essa ideia de um dia voltar a me apresentar na rua, mas as coisas têm que melhorar muito. Espero não precisar tocar gaita de boca com máscara - disse.