Flutuando no arroio mais famoso da cidade, uma trabalhadora silenciosa completa cinco anos de atuação atingindo um feito difícil de ignorar. Desde que começou a operar, em 28 de março de 2016, a ecobarreira do Arroio Dilúvio já impediu que lixo suficiente para encher quase 65 caminhões fosse parar nas águas do Guaíba.
Até 21 de março, a estrutura reteve mais de 775 toneladas de resíduos, entre garrafas pet, capacetes, embalagens, animais mortos e até eletrodomésticos. O resíduo coletado no local é recolhido pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e encaminhado ao aterro de Minas do Leão.
— Se tu me perguntasse cinco anos atrás quanto lixo sairia dali, eu não diria tudo isso. Uma pessoa que pare na beira do Dilúvio e comece a observar o que passa vai ver uma garrafa, um plástico. Isso não dá noção do quanto ele recebe de contribuição — diz Luiz Carlos Zancanella Júnior, presidente do Instituto Safeweb e idealizador da ecobarreira.
Engenheiro de formação e ex-vizinho do Dilúvio, foi ele próprio um observador assíduo do local. Cansou de ver da janela de casa o lixo arrastado pelo curso d´água, especialmente, em dias de chuva. Inspirado em uma iniciativa de Baltimore, nos Estados Unidos, levou a ideia da ecobarreira à Safeweb, empresa da qual é vice-presidente, em 2014.
A instituição aprovou a iniciativa, e o instituto logo começou a buscar formas de viabilizá-la. Um dos primeiros passos foi contatar o professor do Instituto de Pesquisas Hídricas (IPH) da UFRGS Gino Gehling para que ajudasse a desenvolver o projeto. A prefeitura também foi procurada e simpatizou com a proposta do Safeweb, que assumiria os custos de instalação e manutenção da estrutura. Ainda assim, os trâmites de liberação demoraram cerca de um ano e meio.
O primeiro modelo foi feito pela empresa Ecotelhado, e consistia em instalações semelhantes a jangadas, recheadas com garrafas plásticas. Por cima delas, uma vegetação que chegou a atingir dois metros de altura ajudava a reter parte do material, além de embelezar o equipamento. Cenário até então inimaginável para muitos, o local tornou-se atrativo para espécies de aves como garças, bem-te-vis e curiós.
— Tinha um aspecto paisagístico interessante. Atraía pássaros, que ficavam sobre a ecobarreira para capturar os peixes que chegavam. As pessoas não imaginam, mas tem uma fauna variada ao longo do arroio — conta Gehling, doutor em recursos hídricos e saneamento ambiental.
Bastaram as primeiras chuvas fortes, porém, para que o modelo fabricado pela Ecotelhado mostrasse suas fragilidades. Até então testado em locais de águas calmas, ele foi castigado por enxurradas que arrastavam resíduos arroio abaixo e danificavam a estrutura, exigindo intervenções frequentes.
Cerca de um ano após a barreira começar a operar, o modelo ecológico foi substituído pelo atual, que conta com tonéis flutuantes mais resistentes aos golpes. Mesmo esses já necessitaram substituição: parte da estrutura foi corroída com o passar do tempo, e precisou ser trocada.
Além da barreira em si, uma gaiola é usada para capturar e içar o material até as proximidades do talude, onde um funcionário faz a pesagem e armazena os resíduos para descarte. Na mesma altura da Avenida Ipiranga onde a ecobarreira foi instalada, nas proximidades da Avenida Borges de Medeiros, um painel luminoso exibe a quantidade de lixo retida por ela.
Com profundidade de cerca de 20 centímetros — medida estipulada para não prejudicar a fauna do arroio —, a barreira serve para reter resíduos sólidos flutuantes. O material coletado é separado no local e recolhido pelo Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) diariamente.
Como a barreira retém o que é trazido pelas águas do Dilúvio, os dias chuvosos marcam as maiores demandas de trabalho — nesses casos, é comum ter de convocar mais um funcionário para ajudar na separação. Da mesma forma, anos com maiores acumulados de chuva costumam ser os que registram mais lixo retido. O ano recorde foi 2017, o mais chuvoso dos últimos cinco, quando foram recolhidas mais de 217 mil quilos de entulho no local.
O contador em tempo real que mostra o total coletado serve para chamar a atenção da população para o problema, cuja origem é diversa. Além de receber cerca de 50% das contribuições de toda a cidade, o Dilúvio, assim como os outros 28 arroios da Capital, é alvo de descartes irregulares. Há ainda um problema social relativo à moradia, uma vez que áreas não regularizadas sem saneamento acabam por despejar os resíduos no curso d’água.
Parceria renovada por mais cinco anos
Sem perspectivas de resolução dos problemas de habitação e com o custo da canalização de todo esgoto da Capital estimado em quase R$ 1,8 bilhão, a prefeitura comemora a iniciativa que tem ajudado a amenizar o aporte de lixo que chega ao Guaíba, cujas águas abastecem boa parte da cidade. Tanto que, em comemoração ao aniversário de Porto Alegre e às vésperas de vencer o termo de cooperação, poder público e Safeweb decidiram renovar a parceria por mais cinco anos.
— A nossa avaliação é superpositiva. A gente não consegue ter exatamente a noção da quantidade porque o Guaíba recebe muitas contribuições, mas são resíduos que deixam de surgir na captação da água bruta — diz o diretor-executivo do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Alexandre Garcia.
Somente desde o final de 2017, o poder público efetuou dragagens em pelo menos três trechos do Dilúvio. Durante os trabalhos, foram retiradas mais de 23 mil toneladas de resíduos. A despoluição do local, considerada necessária para uma efetiva revitalização, a exemplo do que ocorreu em arroios como o Cheonggyecheon, em Seul, levaria, pelo menos, uma década, segundo especialistas. Os altos custos e a falta de ações políticas concretas, no entanto, tornam ainda mais difícil projetar mudanças significativas nas próximas décadas.
Segundo Garcia, iniciativas semelhantes seriam viáveis e bem-vindas em outros arroios da cidade. Mas não há, no momento, outras parcerias no horizonte para viabilizar instalações semelhantes — somente a manutenção do equipamento instalado no Dilúvio custa cerca de R$ 20 mil mensais ao Instituto Safeweb.
Enquanto a ideia não se multiplica em Porto Alegre, a vizinha Cachoeirinha receberá uma instalação livremente inspirada na ecobarreira do Arroio Dilúvio. A estrutura, projetada pelo engenheiro Alisson Sauer da Silva, será instalada sobre o Arroio Passinhos, e será custeada com recursos oriundos de sanções ambientais.
Destino dos resíduos ainda é questão
Se a ecobarreira do Arroio Dilúvio tem impedido que resíduos entulhem ainda mais a principal fonte de água dos porto-alegrenses, o destino do material retido pela estrutura ainda está longe do ideal. Apesar de ser composto, em boa parte, por materiais que poderiam ser reciclados, tudo que é retirado do local é recolhido pelo DMLU e destinado, atualmente, ao aterro de Minas do Leão, para onde vai todo o material não reciclável da Capital.
Não foi por falta de tentativa. Segundo a prefeitura, por cerca de um ano, entre 2019 e novembro de 2020, os resíduos foram destinados a uma unidade de triagem e compostagem na Lomba do Pinheiro. O projeto-piloto, no entanto, mostrou-se pouco vantajoso para as famílias, que conseguiam aproveitar, em média, menos de 5% do material.
— O DMLU fez um monitoramento desse período. Por conta do ambiente do arroio, os resíduos chegam com lodo junto. O processo de secagem não estava valendo a pena para as famílias. Elas não estavam tendo rentabilidade — diz o secretário de Serviços Urbanos, Marcos Felipi Garcia.
Diante da impossibilidade de dar uma destinação mais sustentável ao que é retido na ecobarreira, a prefeitura voltou-se novamente para ações preventivas para evitar os descartes irregulares nos arroios da Capital. Conforme o titular dos Serviços Urbanos, o DMLU tem investido em publicidade educativa, através de vídeos postados nas redes sociais do órgão.
Além disso, em fevereiro, o DMLU retomou as ações do projeto Bota-Fora, que tinha sido suspenso no ano passado. A ação, cuja retomada foi reivindicada por diversas comunidades durante a campanha eleitoral, percorre os bairros periféricos para recolher objetos volumosos — muitas vezes despejados às margens dos cursos d'água. A previsão é de que 200 locais sejam visitados até julho.
Objetos inusitados, memes e surfe
Com 28 quilômetros de extensão, o Arroio Dilúvio é o maior e mais importante de Porto Alegre. Localizado na região central, parte dele no meio da Avenida Ipiranga, é também o que mais se relaciona com o cotidiano da cidade.
Outrora um curso de água potável, foi degradado nas últimas décadas. Além da poluição, ocasionada por diferentes fatores, tornou-se folclórico por uma série de acidentes de trânsito ocorridos na Ipiranga, que acabaram com veículos parcialmente submersos no local — o que ajuda a explicar porque capacetes são retidos com frequência pela barreira ecológica. O mais emblemático, que envolveu o ator Werner Schunemann, virou meme com a entrevista em que relatou o acidente.
O local também já foi alvo de intervenções artísticas e, em 2009, palco de um evento inusitado. Durante uma chuva torrencial, três amigos rumaram para lá com pranchas e surfaram nas águas poluídas do Dilúvio. A ação rendeu outro vídeo que fez sucesso na internet.
Episódios insólitos também atingiram a ecobarreira, e pelo menos um deles teve um contexto sinistro. Anos atrás, um funcionário do local avistou, perto da estrutura, uma cabeça flutuando no arroio. Assustado, pensava em chamar a polícia quando percebeu que o objeto era, na verdade, parte de um manequim. Mal sabia ele, no entanto, que um cadáver havia passado despercebido pela instalação.
— A polícia foi até lá procurando uma moradora que tinha desaparecido durante uma enxurrada. Depois descobriram que ela tinha passado por ali. Foi encontrada mais adiante — recorda Luiz Carlos Zancanella Júnior.
Apesar da relação próxima da cidade com o Dilúvio e dos esforços em comunicar a dimensão do estrago causado pelo descaso geral com o riacho, Júnior acredita que as pessoas ainda estão longe de se conscientizarem sobre o problema. Ele observa que, com o passar dos anos, não houve queda na quantidade de lixo retirado do local, o que indica que, além dos fatores que fogem à alçada da população, a parte que cabe a cada um continua sendo ignorada.
— A gente não observa uma queda na coleta. Acho que tem vários problemas envolvidos, que exigem um trabalho árduo de educação e socialização. O fato de a ecobarreira ter que existir me incomoda porque ela trabalha na consequência. Mas, enquanto for necessário, quero que ela esteja lá, e pretendemos mantê-la — diz o presidente do Instituto Safeweb.