Era uma quinta-feira de tormenta em Porto Alegre, o céu escureceu durante o dia e despencou em uma chuva torrencial. Justamente o que três amigos precisavam para protagonizar uma das cenas mais doidas já registradas na cidade: eles pegaram uma prancha Shortboard, vestiram roupas de borracha compradas para o litoral gaúcho e surfaram no Dilúvio, mais especificamente na esquina da Lucas de Oliveira com a Ipiranga.
Saíram das águas poluídas do arroio bem sujos, é claro, mas também orgulhosos. E consideravelmente famosos. Ricardo Dullius foi quem deu entrevista para ZH depois da aventura, no dia 19 de novembro de 2009.
— A gente pensa em voltar (a surfar no arroio) porque a vida é muito curta para passar em branco — disse ele, então com 22 anos.
Dez anos se passaram e, mais maduros, eles não têm planos de cumprir a promessa. Todos se mudaram para capitais onde faz mais sentido praticar o esporte: Ricardo e Nelson Pinto, 32 anos, moram no Rio de Janeiro e Juliano Didonet, da mesma idade, em Florianópolis. Por telefone, Didonet, que trabalha com rotinas administrativas em uma empresa têxtil catarinense, lembrou como teve a ideia de pegar onda no Dilúvio:
— Eu morava no Menino Deus à época, estava passando pelo Dilúvio e vi uma ondinha. Resolvi ligar pro Nelson, colega da ESPM, porque sabia que se alguém fosse topar, esse alguém seria ele. Ele disse para eu esperar onde estava que traria a prancha e a corda para resgate.
"É hoje ou nunca", foi o que pensou Nelson, que matou a reunião de um trabalho em grupo da faculdade e foi o primeiro a entrar na água. De cara, eles viram que dava mesmo para surfar na onda marrom que se formava numa inclinação do canal. O que não funcionou muito foi a ideia de evitar pôr o rosto na água. Com a força da correnteza, levaram alguns caldos, mas não engoliram água.
Um grupo de curiosos se formou às margens para assistir às tentativas.
— Surfar num lugar que sai esgoto e a galera achar irado não faz muito sentido. Mas nada fez sentido nenhum, a gente só foi lá se divertir — lembra Ricardo.
Um quarto amigo gravou a cena, que foi publicada na internet (teve quase 700 mil visualizações até então) com a logotipo da empresa que Nelson tinha à época — a prancha que utilizaram era uma das que fez em uma fábrica do Menino Deus. Como eles não sabiam se podiam surfar no Dilúvio — até a possibilidade de serem presos passou pela cabeça — , saíram da água quando ouviram uma sirene. Em nada aquela ambulância tinha a ver com eles, mas "criaram consciência" e não caíram de novo na água.
Não se sabe se o vermífugo e o Tylenol com que se automedicaram têm créditos, mas ninguém ficou doente. Juliano desistiu de tentar tirar o cheiro de esgoto da roupa de neoprene e jogou ela no lixo. Nelson tomou quatro banhos na sequência para se desinfectar.
Ele não contou o que fez para os pais, que ficaram sabendo pelas páginas da Zero Hora. Juliano teve problemas em casa também:
— Meu pai queria me "capar", mas depois acabou achando engraçado.
Os três seguem surfando até hoje, em águas mais limpas. Nelson, que hoje tem uma produtora de vídeos, rodou o mundo para pegar onda — foi para Austrália, Indonésia, Taiti, México, Costa Rica, El Salvador, Nicarágua, Espanha, Ilhas Fiji. A onda do Dilúvio também despertou seu interesse por outras em água doce: já surfou em rios com fenômeno parecido ao daqui na Alemanha e nos Estados Unidos.
Ele volta duas ou três vezes por ano para Porto Alegre. Acha graça quando passa pelo Dilúvio e relembra essa história, mas também revive uma decepção sua:
— Naquela época eu imaginava que, em dez anos, o Dilúvio ia estar limpo. Podia ter um calçadão, podia ter gente andando de caiaque ali, uma ciclovia bonita. Acho que é uma utopia.
*Colaborou Amanda Caselli