Para gerações que desbravaram a vida noturna porto-alegrense nas últimas três décadas, o destino óbvio para curar a ressaca ou encerrar a noite com uma sopa quente foi o Bar Van Gogh, na Cidade Baixa. Mas entre o começo dos anos 1970 e o final da década de 1980, a reconfortante refeição pós-balada teve concorrência, que há quem considere ainda mais famosa.
Preparado com apenas três ingredientes e servido durante a madrugada, o sopão do Tidi, como ficou conhecido, virou marca registrada de um minúsculo estabelecimento na Rua José do Patrocínio, perto da Praça Garibaldi. Vendido inicialmente em copos (os pratos vieram depois), o líquido fumegante foi, por quase 17 anos, o carro-chefe do Luanda Bar, reduto de boêmios e palco de acaloradas discussões do movimento negro em Porto Alegre.
— Era água, galinha e massa. Eu renovava constantemente durante a madrugada, e além disso tinha uma pimenta muito forte preparada em um garrafão. Era só energia e caloria nos fregueses. Os caras saiam dali bufando. Por isso é que diziam que a sopa levantava até defunto — revelou a Zero Hora Aristides da Silva, o Tidi, já falecido, em uma entrevista depois do fechamento do bar, em 1988.
Músicos, jornalistas, políticos e outras personalidades da noite eram os que mais se beneficiavam do caldo revigorante preparado no Luanda. O sucesso entre os notívagos também tinha a ver com o horário de funcionamento do bar, que abria por volta das 21h e só fechava de manhã.
Entre os frequentadores famosos, estiveram Lupicínio Rodrigues, Paulo Sant’Ana, Jamelão e Glênio Peres. Um dos nomes mais emblemáticos do jazz gaúcho, Jorge Alberto de Paula, o Jorginho do Trompete, tornou-se freguês na década de 1980, quando tocava no Clube da Saudade. Recorda do local como um ponto de encontro de músicos que tocavam na noite, com uma “canja muito boa”. Suas mais vívidas recordações, no entanto, são as brincadeiras do proprietário com a clientela.
— Ele (Tidi) era muito engraçado. Usava as unhas compridas, mas a do mindinho era a maior. Uma vez vi ele usar a unha para espetar um ovo em conserva e dar para um cara que estava lá sentado. E o cara comeu! O pessoal gostava dele — diverte-se Jorginho.
O clima descontraído do bar ajudava a manter a harmonia do ambiente, onde conviviam políticos, taxistas, prostitutas e intelectuais. Em um trecho do livro Negro em Preto e Branco: a história fotográfica da população negra de Porto Alegre, organizado por Irene Santos, o local foi descrito como “um universo democrático protegido pelo manto da noite”.
— Era um ponto tradicional dos boêmios. Mas os encontros aconteciam ao natural, ninguém marcava. A noite era muito agitada, mas era tranquila, segura. A gente podia ir pra tudo quanto é lugar a pé, não tinha perigo — recorda o músico Carlos Santos Neto, o Carlinhos Santos.
“Olha a sopa quente!”
Embora tenha se tornado popular a partir de meados da década de 1970, a história do bar começou nos anos 1960. Seu fundador foi o artista plástico e pai de santo João Altair, que batizou a casa com o nome da capital de Angola em homenagem ao continente africano. Decorou o local com máscaras e pinturas de guerreiros africanos.
O bar passaria por diversos proprietários até chegar às mãos de Tidi, em 1971. Embora tenha mantido o nome dado por João Altair, sua personalidade divertida e aberta aos diferentes perfis que frequentavam o Luanda fez com que o lugar ficasse conhecido como “bar do Tidi”.
Prato mais famoso da casa, o sopão surgiu de forma despretensiosa, em uma madrugada gelada de inverno. Para tentar espantar o frio, os frequentadores pediam cachaça. Como a bebida não era suficiente para aplacar a friaca, Tidi arregaçou as mangas e colocou seus dotes culinários a serviço da freguesia. O sucesso imediato do prato fez com que entrasse para o cardápio e fosse servido em todas as estações do ano.
“A galinha era lavada, cortada e fervida aos olhos de todos os clientes na pequeníssima cozinha que ficava atrás do balcão”, lembra outro trecho do livro organizado por Irene Santos. Quando o caldo ficava pronto, Tidi saía gritando: “Olha a sopa quente, vão se afastando do corredouro!”, enquanto circulava pelo espaço apertado do bar.
Para receber a freguesia, Tidi vestia-se sempre da mesma forma, com avental, gravata e boné branco. Não fazia distinção entre os clientes, mas, com os bêbados, a tolerância tinha limite. Podiam permanecer no bar desde que não importunassem os frequentadores. Do contrário, eram expulsos sem dó.
Contrastando com o dono folclórico, o ambiente era de um pé sujo dos mais singelos. O imóvel pequeno acomodava apenas três ou quatro mesas. A iluminação era claríssima, e não havia atrações musicais ou som ambiente. A trilha sonora ficava a cargo das conversas animadas que se estendiam madrugada adentro.
— Não tinha nada de especial a não ser a sopa e o proprietário. O Tidi era uma pessoa muito afável, era como se a gente tivesse conversando com um pai. Acho que a simplicidade atraía as pessoas, porque ficou famoso no boca a boca — lembra Carlinhos Santos, que usava os guardanapos do bar para rabiscar ideias de composições.
Sozinho no comando do bar, Tidi fechou o negócio em 1988, depois de contrair uma doença que tirou sua visão. Uma reportagem publicada em Zero Hora dias depois do fechamento dava a dimensão da importância do local na cena boêmia da Capital: “a noite ficou mais triste sem o Luanda e seu famoso sopão”, destacava o texto.
Disponível para locação, o imóvel que abrigou o bar, à altura do número 998, recebeu diversos pequenos empreendimentos ao longo dos últimos anos. Nenhum, porém, alcançou o sucesso do bar minimalista que aqueceu a boemia porto-alegrense por quase duas décadas.