O número 1.239 da Rua Voluntários da Pátria já foi um sumptuoso casarão à beira do Guaíba. Ele estava lá enquanto o 4º Distrito se transformava em potência industrial de Porto Alegre, viu ali a construção do que se chamou de "bairro-cidade" – onde havia moradia, trabalho, lazer, estudo e tudo o que era preciso para viver.
Mas viu também o Guaíba sendo afastado com o aterro, e, mais tarde, levado para além de uma via de seis faixas. Testemunhou as empresas saindo e os moradores indo embora. Por fim, viu o trecho ao norte da Voluntários virar uma região deserta e perigosa, nas imediações da Estação Rodoviária. Uma rua em ruínas — assim como o próprio casarão.
O imóvel pertencia originalmente ao descendente de alemães Alfredo Dillenburg, um rico comerciante, criador de uma rede de captação de produtos agrícolas com dois irmãos — os armazéns ficavam na frente da moradia. Era uma mistura de casa do campo com casa de cidade, conta a professora da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCRS Leila Mattar, que fez pesquisas de mestrado e doutorado na região.
A data em que o casarão foi construído é desconhecida. O primeiro documento que há na prefeitura é de uma alteração na fachada em 1919: um projeto assinado por Theo Wiederspahn, responsável por parte da arquitetura mais significativa da Capital. São dele os prédios onde há hoje o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (antiga Delegacia Fiscal da Receita Federal), o Memorial do Rio Grande do Sul (Correios e Telégrafos), a Casa de Cultura Mario Quintana (Hotel Majestic) e ainda o Edifício Ely, ao lado do Viaduto da Conceição.
O projeto tinha traços pomposos, com colunas, estatuetas e até um brasão com a inicial da família no topo.
— O Theo Wiederspahn fez uma fachada nova, com adornos. Essa era a característica dele, usava esses elementos históricos, decorativos — conta Leila Mattar.
Na metade do século passado, a casa se transformou em um cabaré. Mas não de qualquer tipo: o American Boite foi um dos mais requintados que a Capital já viu. Uma das boates preferidas do músico Lupicínio Rodrigues, recebia até shows internacionais.
Em uma entrevista para o caderno Cultura de Zero Hora, em 2005, Paulo Sant’Anna foi perguntado sobre a noite em Porto Alegre quando era jovem e citou o American Boite como um dos locais onde "havia a melhor música". Em 2001, Luis Fernando Verissimo também recorreu à memória e escreveu sobre o local: "A boate mais ‘fina’ era a American Boite, onde, diziam (nunca fui, eu e meu orçamento não passávamos do 'Maipu'), havia argentinas espetaculares". Mais tarde, teve outras boates no número 1.239 da Voluntários, como a Cascalho.
Hoje, a visão da fachada do casarão está parcialmente escondida por um puxadinho, onde havia uma borracharia. Atrás do imóvel, há a lavagem do Aníbal de Moraes, 60 anos, que aluga o espaço já há 21 anos.
Ele conta que, no começo, vinha gente vasculhar o terreno acreditando que encontraria algum tesouro enterrado. Até um detector de metais já trouxeram, segundo ele.
— Uma senhora de quase cem anos perguntou se eu sabia das histórias, de que tinha um ouro enterrado lá. Mas eu nunca vi nada.
O filho de Aníbal ouviu quando o telhado desmoronou completamente, há alguns anos. Do casarão, só sobraram as paredes laterais. Dentro há pombas, telhas quebradas, sucata de veículos e um minhocário que o seu Aníbal improvisou pensando nas suas pescarias.
O casarão da Voluntários é protegido como imóvel de estruturação pelo patrimônio histórico e cultural do município, segundo a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc). Significa que ele não pode ser demolido e tem que ser restaurado.
A Secretaria Municipal de Cultura afirma que uma denúncia será aberta junto ao departamento, para que uma notificação de vistoria seja enviada ao proprietário, para que tome providências em relação à manutenção do imóvel.
GZH procurou o homem que tem a posse da área, que não quis se identificar. Ele conta que já conheceu o casarão muito abandonado e danificado:
— Qualquer mão que colocar ali é capaz de cair.
O homem cogita até mesmo demolir — questionado pela reportagem, ele disse não saber da proteção determinada pelo município. Também não descarta uma reforma, mas diz que não teria condições de arcar com obras de grande complexidade.