Poucas personalidades inscreveram seu nome na memória afetiva da Capital com tanta irreverência quanto a Nega Lu, figura alegre e anticonvencional que se transformou em ícone de sucessivas gerações. Precursor de conquistas sociais e comportamentais que só viriam a tomar corpo duas ou três décadas depois, Luiz Airton Farias Bastos, como está registrado na certidão de nascimento, ganhou fama na cena cultural e boêmia de Porto Alegre entre os anos 1970 e 1990.
A personagem surgiu nos bancos escolares do Colégio Infante Dom Henrique, por volta de 1970, época em que Luiz Airton adotou o codinome e assumiu publicamente sua homossexualidade. Depois disso, só quem tinha autorização para ainda chamá-lo pelo nome de batismo era a avó Hilda, com quem morou a vida toda na Rua Almirante Gonçalves, atrás da antiga Chácara das Camélias — estádio do Nacional, time de futebol extinto em 1958 —, área hoje ocupada por um supermercado, no Menino Deus. Na juventude, a Nega Lu frequentou, com seu estilo espalhafatoso e divertido, os bares da Esquina Maldita (Avenida Osvaldo Aranha com Rua Sarmento Leite), além de vernissages, shows de MPB no auditório Araújo Vianna e concertos no Salão de Atos da UFRGS.
— Aonde a gente ia, lá estava a Nega Lu— contou Tânia Carvalho, que, naquela época, apresentava o Jornal do Almoço, na TV Gaúcha (atual RBS TV).
Talentosa e perseverante, a Nega Lu estudou na Aliança Francesa e aprendeu balé clássico com a russa Marina Fedossejeva (ex-bailarina do Ballet Kirov), além de se destacar como solista dos corais da UFRGS e da OSPA.
— Com essa voz, pode desmunhecar à vontade — disse o regente Nestor Wenholz, do Coral da UFRGS, ao aprová-la no teste vocal.
O timbre grave retumbou também em performances desbocadas e dilacerantes como crooner da Rabo de Galo, banda de blues de Marco Aurélio Lacerda, o Coié. Mas o palco predileto sempre foi o balcão de fórmica do bar Copa 70, na Esquina Maldita, de onde puxava um coro de bêbados ao entoar Summertime, de George Gershwin. Madrinha e porta-estandarte da Banda da Saldanha, participou também das primeiras Paradas Livres, nos anos 1990. Sem paciência para exercer a militância gay, apreciava o lado lúdico dos cortejos, aos quais aderia com entusiasmo. Nesse período, trabalhou como atendente do bar Doce Vício, na Rua Vieira de Castro, no bairro Farroupilha, um concorrido point do circuito GLS da cidade na época.
A Nega Lu morreu em 17 de setembro de 2005, dois meses antes de completar 55 anos, já debilitada por doenças como hipertensão e diabetes. Com ela, foi-se “um pouco da alegria e da ousadia de Porto Alegre”, como escreveu a jornalista Mary Mezzari (falecida em 2015), uma das amigas mais próximas, no Jornal do Nuances (Grupo pela Livre Expressão Sexual), que estampou a manchete: “Nega Lu subiu para ferver com os anjinhos”.