Um dos hotéis mais tradicionais de Porto Alegre, o Everest encerrou as atividades durante a pandemia de coronavírus e agora vende os itens do mobiliário por agendamento. Joleide Salvini DallAgnol, 66 anos, que trabalha ali há 45 anos, aproveitou para levar banquetas, geladeira, lençóis, toalhas e mais um carregamento de memórias do número 1.357 da Rua Duque de Caxias.
GZH conversou com ela e outros três funcionários do hotel que já foi considerado "o mais luxuoso estabelecimento do gênero no Estado e um dos mais modernos do país", como grafou o jornal após o coquetel de inauguração, em maio de 1964. O mais antigo é Jorge de Lima, 72 anos, que já estava no Everest desde a inauguração. Na verdade, desde antes dela: ainda adolescente, foi servente de obra na reforma que transformou os apartamentos do então prédio residencial em quartos de hotel.
Como mensageiro, ele carregou a mala de ídolos. A bagagem mais importante foi a do rei Roberto Carlos, na década de 1960. Lembra do cordão de isolamento feito desde o Palácio Piratini até o hotel, no alto do Viaduto Otávio Rocha. O carro em que estava acabou pifando na subida da Caldas Júnior, conta Jorge, mas foi rebocado por brigadianos, e o imprevisto não arruinou a recepção. Se não lhe falha a memória, era, por ironia, um Cadillac.
– Chegou em carro aberto, a Jovem Guarda ficou toda enlouquecida – recorda. — Ele ficou na suíte 1105, a suíte presidencial. E eu fui presenteado com um vidro de perfume italiano.
Jorge viu de pertinho os músicos do Herman's Hermits, o primeiro grupo britânico de iê-iê-iê a visitar o Brasil. Na recepção do hotel, bateu papo com Leci Brandão, Tim Maia e Benito di Paula.
– Ele ficava no bar tomando uísque e conversando com a gente – lembra, como se fosse ontem.
Políticos e militares também passaram pelo Everest. No auge da Ditadura Militar, entregava as chaves para militares revistarem os quartos onde se hospedaria gente do governo que vinha ao Sul fazer alguma inauguração, decerto procurando algum artefato perigoso ou escuta.
Gremista, Jorge também viu de perto grandes jogadores de futebol, pois era comum times se hospedarem ali nas vindas a Porto Alegre. Até o Santos de Pelé passou pelo Everest, e Jorge amarga ter perdido uma foto ao lado deste outro rei na recepção.
Por ali ele também deu um jeito de participar da inauguração do Beira-Rio, em 1969. Time que faria o jogo amistoso com o Inter, o Benfica, de Portugal, estava hospedado no hotel. Com carisma e cara de pau, Jorge pediu para ir junto.
– Pedi para eles se tinha um lugar no ônibus. Daí eu fui com a delegação – conta.
Outro nome importante do futebol que Jorge conheceu de perto no Everest foi Francisco Novelletto Neto. Mas neste caso, do mesmo lado do balcão. O primeiro emprego do ex-presidente da Federação Gaúcha de Futebol e atual vice-presidente da CBF foi no hotel, de 1975 a 1981. Primeiro como garçom, como controlador da copa e, por último, como recepcionista.
– Minha vida começou ali, tudo começou ali. E o primeiro amor, a gente nunca esquece – diz Novelletto.
Obviamente, o jovem Novelletto já era fanático por futebol. Ele conta que, além dos times que se deslocavam para enfrentar Grêmio e Inter, muitos jogadores que vinham para jogar na dupla também ficavam ou até moravam lá, como o Flávio Minuano, Marinho Peres e o goleiro Manga. A amizade com o chileno Elías Figueroa, conta Novelletto, começou ali.
Ele lembra também do vestido sensual com que desfilou pelo lobby a cantora Simone – e da gauchada enlouquecida pela "morenaça de quase dois metros de altura" – e também de uma oportunidade de emprego que nunca vai saber para onde teria o levado.
– Eu quebrava todos os galhos para o Benito di Paula e para a banda, estavam direto lá. Fizemos uma amizade tão grande que eles me convidaram para viajar com eles. Imagina, tu podia estar me pedindo autógrafo agora.
Já as primeiras memórias que vêm à cabeça de Rafael Abreu de Oliveira, 40 anos, que entrou como auxiliar de lavanderia em 2000 e foi desligado em julho como supervisor de recepção, referem-se à visita de globais como Denise Fraga, Tony Ramos e, principalmente, Tarcísio Meira. Ficou admirado com a humildade do ator que deu vida a Tibério Vilar, de Saramandaia, e a Giuseppe Berdinazi, do Rei do Gado.
– Fui levar a mala dele, cheio de respeito, e me cativou pela forma de tratar, extremamente humilde. Já era fã na TV, mas virei mais fã depois de conhecer pessoalmente.
Mas mais do que qualquer celebridade de carne e osso, ele atestou a popularidade do Mickey Mouse com os fãs gaúchos. Rememora que no primeiro espetáculo Disney On Ice em Porto Alegre a procura foi tão grande que o hotel precisou montar camas e improvisar quartos nas salas de eventos para atender as famílias.
Joleide, que você conheceu no começo desta matéria, veio de Anta Gorda e encontrou no Everest seu primeiro e único emprego de carteira assinada até então. Começou em 1975, e ficou impressionada com a infraestrutura do hotel – o nome faz alusão à montanha mais alta mundo, uma vez que era um dos prédios mais altos e no topo do Centro Histórico.
O Everest tinha 138 empregados na época, além de padaria, confeitaria e açougue dentro do hotel mesmo.
– Os doces da dona Paquita, já falecida, eram uma loucura. Até foi ela que fez o bolo de 15 anos da minha filha.
Joleide entrou como auxiliar de pessoal, virou encarregada, gerente de Recursos Humanos e, por fim, gerente de operações. Chegou a trabalhar no Rio de Janeiro, onde o Everest abriu uma filial na praia de Ipanema, que também fechou agora na pandemia.
– Entrei aqui uma guriazinha do Interior e vou sair uma avó.