Funcionário da fábrica de talheres Zini-Hércules, o pai de Marisa foi o primeiro operário inscrito para para o extenso prédio de dois andares da Rua Rio Pardo. Optou pelo apartamento número 45, no térreo, encantado pela figueira centenária a alguns metros da porta de casa.
A filha dele, a bancária aposentada Marisa Ramos, 68 anos, cresceu, criou família e ainda mora ali, do lado da árvore. Quando menina, ela e os amiguinhos — eram uns 30 no prédio de 24 apartamentos — amarravam cordas em um dos galhos mais baixos e andavam de balanço. A infância nos tempos áureos da Vila do IAPI também incluiu brincar de carrinho de mão, pandorga e "passa anel".
—Se eu te falar que foi ótimo, eu vou estar mentindo. Foi mais do que ótimo.
Alguns objetos dentro da sua casa também trazem uma enxurrada de memórias, como os discos e livros sobre Elis Regina. Tem também, emoldurada num quarto, uma redação escrita a mão pela Pimentinha, que ganhou nota 9,5. Marisa era o xodó da cantora, que cresceu três apartamentos depois do dela. Sete anos mais nova, acompanhou o começo da vida artística da vizinha.
— Elis adorava crianças. Para onde ia, me levava — conta Marisa.
— Eu estava sempre no Clube do Guri, por exemplo. Não me pergunte onde ficava, porque não tenho nem ideia, mas ela me levava junto.
Quando precisava ligar para a Rádio Gaúcha, Elis ia até o cemitério da vila, onde tinha uma cabine telefônica. Levava a pequena Marisa junto.
— Ela tinha medo de ir no cemitério. Me agarrava e dizia: não olha para os lados — rememora, sem deixar de achar graça.
Marisa sofreu quando Elis deixou Porto Alegre, para seguir sua carreira artística. Conta que a cantora ficou brava com o próprio pai quando ele passou adiante o apartamento de número 21.
— Ela não queria que vendesse.
A saudade de Elis só aumentou — a cantora morreu aos 36 anos, em 1982. Também sente falta da união e da intimidade dos moradores do prédio, de uma época que era possível visitar os vizinhos sem nem bater na porta, porque ninguém trancava. E lamenta a sensação de insegurança que se instaurou na vila nas últimas décadas, fator citado por todos os moradores ouvidos durante essa reportagem.
Neste mês, Marisa foi assaltada na frente de casa. Um homem armado lhe levou o celular, enquanto ela aguardava a filha voltar do trabalho. Os moradores do prédio estão pensando em fazer como vários outros vizinhos e mandar instalar uma grade, junto a mureta de pedra, que é uma das referências neocoloniais do IAPI.
Por causa da violência, já lhe aconselharam a nem varrer mais da calçada as folhas da figueira, aquela pela qual o pai se apaixonou quase 70 anos atrás.
— Eu pensei em sair. Mas fico com aquela coisa... — hesita.
— É que eu não sei morar em outro lugar.
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