Passados mais de oito meses desde que o governo estadual decidiu anular o contrato para revitalizar o Cais Mauá, no centro de Porto Alegre, os pavilhões tombados seguem se deteriorando sem previsão de início da sonhada recuperação.
Em razão do impasse jurídico deflagrado após o rompimento do acordo do Palácio Piratini com o consórcio responsável pelo projeto, está em obras apenas a fração destinada a receber o Embarcadero, espécie de piloto localizado nas proximidades da Usina do Gasômetro. A expectativa é de que algumas atrações sejam abertas ao público no aniversário da Capital, em 26 de março.
À margem do Guaíba, o cenário atual é marcado por um contraste. Nos 19 mil metros quadrados do Embarcadero, operários terminam de erguer a estrutura onde funcionará a subestação elétrica, concluem a instalação de redes subterrâneas, implantam passeios e reforçam os pilares do armazém A7. Já o restante da área de 181 mil metros quadrados segue sem sinal ou perspectiva de obras. Os tradicionais pavilhões continuam se deteriorando: os recentes temporais danificaram ainda mais os telhados das estruturas tombadas pelo Patrimônio Histórico.
A situação deve permanecer a mesma enquanto durar a disputa judicial pela posse da área entre o Piratini, que decidiu romper o contrato com o consórcio Cais Mauá do Brasil em maio de 2019 e oficializou a medida no Diário Oficial em julho alegando descumprimento de cláusulas do acordo como a demora para realizar melhorias. A empresa recorreu e obteve uma liminar que mantém a área sob sua responsabilidade. No momento, o mérito está sob análise da 6ª Vara Federal de Porto Alegre sem prazo definido para uma sentença. Mesmo após uma decisão, qualquer das partes envolvidas pode recorrer a instâncias superiores e prolongar ainda mais o impasse.
A Secretaria de Logística e Transportes do Estado informou que não se pronunciaria por aguardar a manifestação da Justiça. A intenção anunciada pelo Piratini ainda no ano passado é implantar um novo modelo de recuperação que prevê a venda de alguns lotes do cais para empreendedores que se comprometam a investir no restante da área, em vez de oferecer uma concessão temporária como hoje. Mas não há como avançar sem uma definição legal.
Já a Cais Mauá do Brasil, embora tenha recuperado a posse do terreno, informa que tem dificuldade de encontrar investidores pelo fato de a decisão judicial que lhe favoreceu não ser definitiva.
— Continuamos conversando com investidores, inclusive um grupo mineiro que manifestou interesse em todos os armazéns. Já fizemos quatro rodadas de negociação com eles, mas sempre esbarramos na imensa instabilidade da situação jurídica. Temos uma cautelar, que pode cair — afirma o diretor-presidente do consórcio, Eduardo Luzardo.
Assim, por enquanto a renovação se limita à ponta sul do empreendimento graças a uma parceria com a DC Set e a Tornak Participações e Investimentos para criar o Embarcadero e oferecer uma amostra do que poderia ser feito no restante do espaço.
— Pretendemos entregar alguma coisa à população no aniversário de Porto Alegre, como algumas opções de gastronomia, e todas as atrações previstas ainda no primeiro semestre — afirma Eugênio Correa, da DC Set.
Em relação à deterioração dos armazéns, Luzardo sustenta que o consórcio pretende recuperar os estragos quando tiver início o trabalho de restaurar as estruturas históricas — ainda sem data:
— Por que vamos fazer manutenção se temos obrigação de restaurar tudo? Se isso fosse feito, acabaríamos gastando duas vezes, e a obra ficaria mais cara.
A deterioração é um dos argumentos apresentados pelo Estado para tentar retomar a posse do cais. Por enquanto, a única operação já inaugurada no local é um estacionamento privado.
Veja imagens das obras no Embarcadero
Um ano de impasses
2019
Fevereiro
Dia 22
O governador Eduardo Leite cria um grupo de trabalho para analisar a execução do projeto de revitalização do Cais Mauá e apresentar alternativas para a obra sair do papel.
Abril
Dia 5
O consórcio responsável apresenta à Superintendência de Portos do RS o plano de implantar o Marco Zero (projeto-piloto da revitalização), depois chamado Embarcadero, além de um pedido de prorrogação da concessão por mais 25 anos, perdão da dívida com o Estado e retomada do pagamento de 10% do arrendamento da área a partir de 2021 para viabilizar a busca de novos investidores.
Dia 11
O grupo de trabalho da Secretaria de Logística e Transportes apresenta ao governador o relatório sobre a concessão do cais. Eduardo Leite encaminha o estudo para análise jurídica da Procuradoria-Geral do Estado (PGE).
Dia 15
Representantes da empresa Cais Mauá do Brasil apelam ao governador por uma repactuação do contrato por meio de um grupo de trabalho e autorização para dar seguimento às obras do atual Embarcadero. Leite se compromete a discutir a proposta internamente.
Maio
Dia 2
O procurador-geral do Estado, Eduardo Cunha da Costa, entrega a Leite um estudo jurídico sobre a concessão do cais, que apresenta as possíveis consequências das alternativas em análise pelo Executivo, desde a manutenção até o rompimento do contrato. No dia 10, seria entregue o parecer jurídico final com 41 páginas.
Dia 30
O governador anuncia o rompimento unilateral do contrato de concessão com a Cais Mauá do Brasil com base nos pareceres do grupo de trabalho e da PGE. A medida cita o descumprimento de seis cláusulas contratuais, como a falta de obras relevantes e de qualificação financeira, dívida de R$ 6,7 milhões do arrendamento e falta de manutenção dos pavilhões.
Julho
Dia 24
A Cais Mauá do Brasil alega, entre outros pontos, que boa parte do atraso na revitalização foi devido à demora para a obtenção das licenças necessárias à obra. Mas, no dia 24, o governo nega o recurso administrativo movido pelo consórcio e publica a decisão no Diário Oficial. Com isso, o Piratini busca retomar a posse da área.
Agosto
Dia 9
A empresa Cais Mauá entra na Justiça contra Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), Superintendência do Porto de Rio Grande (responsável pelo cais na Capital), governo estadual e União buscando manter o contrato, mas a 6ª Vara Federal de Porto Alegre extingue o processo entendendo que o caso não seria de sua competência.
Dia 20
Em razão de uma apelação do consórcio, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) concede liminar à empresa suspendendo o efeito da sentença anterior e a rescisão do contrato. Assim, a posse da área é mantida pela Cais Mauá.
Setembro
Dia 4
A PGE recorre ao TRF4 contra a decisão de suspender a rescisão do contrato com o consórcio.
Outubro
Dia 1º
A Antaq autoriza o Estado a assinar contratos temporários envolvendo o Cais Mauá, no mesmo dia em que o governador Eduardo Leite vai ao TRF4 pedir agilidade no processo e apresentar argumentos pela rescisão do contrato.
Dia 4
O desembargador do TRF 4 Ricardo Teixeira do Valle Pereira determina que o caso seja apreciado pela primeira instância da Justiça Federal.
2020
Conforme a assessoria de comunicação da Justiça Federal, o processo foi reiniciado na 6ª Vara da Capital e se encontra em análise.
Tire suas dúvidas
Há previsão para o começo da revitalização do Cais Mauá?
Não. Estado e a empresa responsável disputam na Justiça a posse da área, após o Piratini ter decidido romper o contrato alegando o descumprimento de cláusulas do acordo por parte do consórcio.
Quanto tempo o caso pode demorar na Justiça?
Não há como prever no momento. Depende de quando será dada a sentença no primeiro grau da Justiça Federal sobre a posse do terreno e de eventuais recursos apresentados pelos envolvidos.
O Embarcadero vai sair de qualquer jeito?
Os empreendedores do Embarcadero garantem que sim, independentemente da discussão judicial, argumentando que têm respaldo de todos os envolvidos. Algumas opções de lazer e gastronomia ainda não confirmadas devem estar abertas ao público no aniversário de Porto Alegre, em 26 de março.
A empresa pode fazer o que quiser no Cais enquanto não sai uma decisão judicial?
Sim, desde que previsto no contrato firmado com o Estado e enquanto esse acordo estiver vigente. Se a Justiça derrubar a decisão que manteve o contrato ativo, a empresa não poderá mais intervir na área.
Existe possibilidade de acordo?
Até o momento, não. A intenção do governo estadual é retomar a posse da área para implantar um novo modelo de revitalização que inclua a venda de lotes em vez de concessão. A empresa Cais Mauá do Brasil, porém, diz estar aberta a um acordo.
Quais os planos da Cais Mauá do Brasil?
Se mantiver a posse da área, utilizar o Embarcadero como chamariz para novos investidores que financiem a revitalização do restante do cais e dos pavilhões tombados. Hoje, não há recurso para tocar as obras.
Por que fizemos esta matéria?
A revitalização do Cais Mauá é uma das obras mais esperadas pelos gaúchos por seu potencial de valorizar uma área histórica de Porto Alegre, estimular o turismo, a economia e a qualidade de vida. Como desde o início enfrenta problemas burocráticos, financeiros e, agora, jurídicos para sair do papel, GaúchaZH monitora o andamento do projeto a fim de manter a população a par de sua evolução.
Como apuramos esta matéria?
O tema da renovação do Cais Mauá é acompanhado por GaúchaZH, que procura atualizar o estágio do projeto periodicamente. Esta reportagem combinou uma visita ao local com a consulta ao processo em tramitação na Justiça Federal e entrevistas com as principais partes envolvidas.