Depois de aprender a conviver com ameaças e a driblar as dificuldades de comandar uma empresa em crise — não só financeira, mas também de imagem e nas relações pessoais — Helen Machado, 44 anos, decidiu deixar a Companhia Carris Porto-Alegrense ao se tornar alvo de ação judicial — a despedida foi no dia 9 de dezembro. Um processo por dano moral, movido por um ex-funcionário investigado por supostas irregularidades administrativas, fez Helen ter de pagar do próprio bolso sua defesa.
O incômodo, especialmente pelo fato de a Procuradoria-Geral do Município não poder defendê-la (lei municipal excluiu gestores de empresas públicas desse atendimento), foi a gota d'água para a então presidente aceitar o convite para retornar à iniciativa privada — um dos vários que recebeu durante os dois anos e 10 meses em que comandou a Carris. Ela soube da ação judicial em outubro. A chateação por ter de bancar a própria defesa foi um estímulo para planejar a saída.
Para trás, acredita ter deixado uma Carris melhor — ela contabiliza redução de R$ 55 milhões no déficit da companhia em dois anos —, mas que lhe rendeu choro, angústias e medos. Helen assumiu em abril de 2017, em meio a um clima tenso, em que o último presidente ficara apenas 20 dias no cargo e a companhia estava sob interinidade. Ela já atuava na Carris desde fevereiro daquele ano como diretora administrativa-financeira.
Mergulhada em uma tradição de descontrole administrativo e financeiro, a companhia resistia a mudanças. Helen, que sustenta não ter ligações políticas e que foi contratada por meio do Banco de Talentos, estava disposta a desacomodar e a corrigir. Na rápida passagem pela diretoria financeira começara a levantar a fraude do uso do nome de uma criança morta para desvio de valores de indenizações da Carris.
Nos primeiros dia como presidente, ouvia colocações como "a senhora estava em tal lugar tal dia, né?". Distraída e querendo transmitir simpatia aos novos comandados, respondia automaticamente sem pensar. Quando notou que o comentário se repetia muito, brincou: "ué, estão me seguindo?". A resposta foi determinante para ela entender o cenário: "pois é, é só para a senhora saber que é bom se cuidar". O aviso motivou mudanças. Helen passou a não mais sair sozinha. Só se deslocava para assuntos da empresa com assessores e mantinha a agenda de compromissos restrita ao conhecimento de poucas pessoas.
Na rotina pessoal, relata mais limitações:
— Parei de buscar meu filho na escola, deixei de sair finais de semana para os programas que costumava fazer em locais públicos. Saí das redes sociais. Eu e outra funcionária chegamos a ser seguidas até nossas casas. Muitas vezes, chorei, e tive vontade de desistir.
Dentro da empresa, também mantinha cuidados. Temendo escutas clandestinas, passou os três primeiros meses de trabalho fazendo "reuniões" com os funcionários de confiança no pátio da empresa. Se precisava fazer encontros fora, cada um saía em horário diferente, por trajetos diversos, para depois se encontrarem no local da reunião. Para acessar documentos que poderiam revelar irregularidades nas contas, precisava ir à empresa fora de horário de expediente administrativo. Assim, burlava resistências e mantinha sigilo sobre o que estava fazendo.
No caso da fraude em que um funcionário usou o nome de uma criança morta para desviar valores, foi preciso criar uma história para a movimentação de documentos contábeis.
— O Ministério Público mandou o veículo para buscar as caixas e a minha explicação interna é de que os documentos estavam saindo para serem digitalizados — conta Helen.
Ao mesmo tempo em que descortinava o caos financeiro, tentava melhorias para os funcionários:
— Me impressionou muito como a empresa era suja, o pátio, os locais em que os funcionários descansavam e faziam refeições. Aquilo não podia ser assim e passamos a mexer. Aliás, o lixo no pátio era um termômetro que eu tinha para saber o impacto de alguma decisão. Já tinham o hábito de varrer o lixo dos ônibus, deixado pela população, para o pátio. Mas quando eu fazia algo que não gostavam, aquele lixo espalhado aumentava muito.
Uma das medidas de Helen foi criar o programa Linha Direta, que permitia o acesso dos funcionários diretamente a ela para conversar e fazer reivindicações — antes, era uma comissão de funcionários que fazia essa interface. Também passou a frequentar a empresa de madrugada para conversar com os motoristas e cobradores que atuavam naquele horário.
— Achava que os trabalhadores estavam nas mãos de determinadas representações, como massa de manobra. Falar direto comigo permitiu mais transparência e melhor entendimento das nossas propostas, porque as notícias boas acabavam vazando de forma distorcida e as ruins eram pioradas — explica a ex-presidente.
Em meio aos planos para colocar a Carris em ordem, a vida pessoal também cobrava um preço. O filho, nascido prematuro com 27 semanas e dependente de cuidados especiais por complicações respiratórias, teve sete internações hospitalares no primeiro ano de Helen à frente da Carris e mais três no segundo.
— Foi um grande desafio. Mas tinha um propósito, que era mostrar um trabalho sério e realmente fazer a diferença, deixar algo melhor para a empresa. E saí com a certeza de ter cumprido isso — finaliza Helen.
"Não divido o que não tenho", disse então presidente ao cortar benefícios
Ao assumir o comando da Companhia Carris Porto-Alegrense, Helen Machado adotou uma série de medidas vistas com antipatia pelo funcionários. Na primeira semana, implantou controle de acesso de pessoas e de estoque. O objetivo era filtrar apenas o acesso de funcionários, visando a zelar pelos bens e patrimônio da companhia.
Logo em seguida, mandou suspender benefícios como o Programa de Participação nos Resultados Carris (PPRC) e o vale-peru. Para justificar a medida, Helen costumava ser matemática:
— Como uma empresa que em 2016 teve déficit de R$ 74 milhões vai bancar R$ 2 milhões de participação em resultados e R$ 500 mil em vale-peru, que foi o que foi pago na última vez (no começo de 2017)? Não tenho resultados.
Quando anunciou a sua saída, Helen chegou a ser procurada por funcionários pedindo o retorno dos benefícios.
— Não mesmo. Não divido o que não tenho.
E a lista do que era considerado por opositores como "maldades" da nova gestora seguiu longa. Confira algumas:
- Quase duas dezenas de funcionários com cargos em comissão foram demitidos nos primeiros dias.
- O contrato com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), que permitia que presos do regime semiaberto atuassem na empresa, foi suspenso. O motivo: dificuldades em atestar a presença dos detentos no serviço. Foi apurado que coordenadores chegavam a sofrer ameaças para mentir.
- Redefinição junto ao corpo médico da companhia para o encaminhamento de cirurgias prioritárias. Até então, esses procedimentos eram definidos pela comissão de funcionários, que decidia quem seria operado primeiro sem qualquer avaliação médica.
- Criação de uma política de sanções aplicável de forma igualitária a todos e que previa itens como o de proteção à imagem da empresa, que estava fragilizada por comentários dos próprios funcionários em redes sociais.
- Implantação do programa Fumo Zero. No pátio da Carris há um posto de combustível e os funcionários fumavam no local.
- Fechamento das valas que era usadas como local de descanso e de alimentação. As valas são espaços que ficam no subterrâneo das garagens dos ônibus. Os espaços reuniam peças, materiais diversos de manutenção e roupas e comidas dos funcionários.
- Apuração de desvios em nome de criança morta e de pagamentos irregulares de horas-extras na Linha Turismo.
- Implementação do despejo (com ordem judicial) da sede da União Social dos Empregados da Carris, a Use Carris, que ocupava terreno público e prédio construído com valores da companhia.
- Abertura de procedimento para promover a devolução, pela Use Carris, de valores que deveriam ter sido usados para construção e administração de uma creche.
Na contabilidade de melhorias, Helen destaca a redução de 73% nos casos de acidentes de trabalho, a inauguração do refeitório e sala de convivência, que permitiu fechar as valas antes usadas para alimentação e descanso, e o salto de 5 mil para 38 mil horas de treinamento e qualificação para os funcionários.