Na véspera do Dia Mundial de Combate à Aids, um grupo de 50 admiradores lembrou um dos maiores talentos do Rio Grande do Sul que a epidemia levou, em 1996. A 1ª Caio Fernando Abreu Free Walking Tour percorreu locais de Porto Alegre relevantes para a vida e obra do escritor gaúcho entre Centro Histórico e Bom Fim, , com paradas para leituras de trechos da obra de Caio.
Em meio às homenagens ao escritor, morto aos 48 anos, o evento organizado pelo Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS (Gapa RS) com apoio da ONG Minha Porto Alegre quis também a chamar a atenção para a preocupante realidade da doença no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Ao longo do trajeto, os participantes distribuíram adesivos por placas e muros alusivos ao combate à aids.
Conforme relatório de 2018 do Ministério da Saúde, Porto Alegre tem a maior taxa de detecção do vírus entre capitais: são 60,8 mil casos a cada 100 mil habitantes, 3,3 vezes maior do que a taxa do Brasil. No Rio Grande do Sul, a mortandade é de 9 a cada 100 mil habitantes, quase o dobro da média nacional (4,8). Porto Alegre também é a capital brasileira com a maior taxa de detecção de HIV em gestantes: são 20,2 casos por mil nascidos vivos, mais de sete vezes a média nacional (2,9).
– Aids é fato. Não é fake. Ela é uma doença que cresce e mata na invisibilidade, e é exatamente o que está acontecendo agora. Criou-se um mito de que não se morre mais de aids. Hoje mesmo sairemos daqui para ir ao enterro de um dos nossos ativistas. Precisamos urgentemente voltar a falar sobre isso – declarou Carla Almeida, presidente do GAPA RS, entidade que está sem sede há mais de dois anos.
O evento deste sábado (30) começou no subsolo da livraria Baleia, na Rua Fernando Machado, com um fala de Amanda Costa, astróloga, amiga do escritor e autora de 360 Graus – Inventário Astrológico de Caio Fernando Abreu (Editora Libretos, 2011), livro que nasceu de uma tese de mestrado em Literatura Brasileira pela UFRGS que aborda a obra do escritor do ponto de vista astrológico. Amanda relembrou os primeiros encontros com Caio:
Aids é fato. Não é fake. Ela é uma doença que cresce e mata na invisibilidade, e é exatamente o que está acontecendo agora. Criou-se um mito de que não se morre mais de aids. Precisamos urgentemente voltar a falar sobre isso
CARLA ALMEIDA
presidente do Gapa RS
– Tinha uma época em que ele usava uma capa marroquina comprida, um cabelão. Lindo, lindo, lindo. Não tinha como não ficar louca com ele. E ele era uma pessoa um pouco arredia. Não era alguém que tu chegavas e já fazia contato. Um virginiano com ascendente em libra, com Marte, que é o guerreiro, em escorpião. O que dá um jeitão meio escorpião pra ele também. O corpo peludo, o nariz agudo, o olhar penetrante e também as atitudes intempestivas, ou "enfrentativas", adjetivo que ele mesmo usava – conta Amanda, lembrando que Caio costumava pedir a ela mapas astrais dos seus personagens.
A caminhada, guiada pela designer Zi Bonotto, da Minha Porto Alegre, passou pelo Teatro de Arena, lembrando as oito peça que Caio escreveu, a Esquina Maldita, no limite da Avenida Osvaldo Aranha – berço de uma série de contos do autor –, a Redenção, o antigo Cine Baltimore e, por fim, o bar Ocidente.
Na Redenção, a guia lembrou que Caio, em sua temporada em São Paulo no final de década de 1990, costumava brincar com os amigos que iriam visitá-lo para levarem "erva-mate e plátanos". Faltavam plátanos como os da Redenção em São Paulo e, debaixo de um deles, foi lido um relato de Caio sobre a cidade:
"Ando morto de saudade de Porto Alegre. Acho que vou agora, no fim do mês, ficar uns 10 dias. Vou de ônibus, bem pobrinho. Basta sentar nos degraus de casa, tomar um sol, chimarrão com bergamota, uma noitada no Lola e/ou Ocidente, uma voltinha na Redenção, um por do sol no Guaíba e já me sinto tri reenergizado. Amo demais o Sul. Naturalmente é um sul utópico, que existe mais na memória afetiva, filtrada, do que na real. Mas sempre me pergunto: por que raios a gente tem que partir? Voltar, depois, é quase impossível."
No próximo ano, o evento deve se repetir com novos destinos. Deve passar pelo Menino Deus, bairro em que viveu o escritor, e pode virar um passeio de bicicleta. A programação do Dia Mundial de Combate à Aids segue neste domingo (1), às 16h, com a exibição do documentário Carta para Além dos Muros na Cinemateca Capitólio.
A caminhada deste sábado terminou no café Piperita Sabores Especiais, com aplausos emocionados à atriz e diretora Deborah Finocchiaro, que interpretou dois textos do autor, parte do espetáculo Caio do Céu. Entre eles, Zero grau de Libra, uma espécie de oração pedindo luz a personagens de todas as metrópoles:
"Deita teu perdão sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre as travestis, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas. Sobre todos que de alguma forma não deram certo, porque, nesse esquema, é sujo dar certo. Sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma, sobre esses que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões."