Para além da materialidade, os objetos são passaportes para memórias e sensibilidades. Sob esse argumento, o professor da PUCRS Ricardo Barberena convidou 28 escritores a explorarem as possibilidades narrativas de 15 objetos plenos de significado para seu antigo dono, o escritor Caio Fernando Abreu (1948 – 1996), e criar textos ficcionais.
O resultado desse desafio é a coletânea de contos O Que Resta das Coisas (Zouk), que será lançado nesta terça-feira (20) com sarau e sessão de autógrafos. O livro reúne autores de diferentes gerações e trajetórias, desde escritores de carreiras consolidadas, como Verônica Stigger, Cintia Moscovich, João Carrascoza, Valesca de Assis e Marcelino Freire, a jovens revelações da literatura, como Julia Dantas, Natália Polesso e Luisa Geisler.
Coordenador do Delfos, espaço que conserva “tesouros” como acervos de documentos, peças e objetos valiosos para a memória cultural, Barberena concebeu a ideia do livro instigado pela possibilidade de dar nova significação aos objetos.
– A intenção foi propor uma forma de juntar os acervos literários à escrita criativa – afirma o professor, que ofereceu aos escritores que escolhessem uma peça da coleção para servir de gatilho poético.
Da boina ao notebook; do álbum de bebê ao baralho de tarô; da identidade estudantil aos LPs, a natureza diversa dos itens se abre a uma multiplicidade de leituras. Além disso, não foi feito qualquer pedido nem restrição aos escritores – apenas um limite de páginas. As coisas, segundo explica Barberena, eram apenas pontos de partida para “destinos imprevisíveis”.
A presença de Caio emerge em parte dos contos, como evocação, personagem, interlocutor ou incorporado em gestos, gostos e hábitos de um narrador fictício. Em outros, os objetos impulsionam narrativas desconectadas de seu antigo dono e distantes da existência material das coisas, como a transmutação de um pequeno saco de veludo vermelho em útero, no texto de contornos surrealistas de Cristiano Baldi.
O formato, acrescenta o organizador da obra, também não foi determinado. Entre a narrativa em prosa, preferida da maioria, há lugar para o formato de texto como correspondência, no conto de Ricardo Lísias, e em versos, no capítulo de Leonardo Tonus.
No lançamento, que terá a presença de boa parte dos gaúchos que fazem parte da obra, os autores farão leitura de trechos de seus textos ao lado dos objetos.
Porém, nem tudo que faz parte do acervo mantido pelo Delfos está ao alcance dos olhos. Os diários de Caio são mantidos trancados e, por um acordo feito com as irmãs do escritor quando da doação das peças, sequer Barberena pode ler esses cadernos, embora seja o guardião da chave.
– Eles estão em um armário cadeado e ninguém pode ter acesso. É um conteúdo íntimo. Pode ser autorizado no futuro, depois que algumas pessoas citadas tenham morrido. Mas não existe previsão – afirma o coordenador do espaço, explicando que a confiança das famílias dos artistas que cedem seus acervos é inviolável.
Confira trechos de quatro contos que integram o livro
A engrenagem
Altair Martins
“Uma máquina pequena, quase criança, ele pensa ainda. Tec, tec, a máquina diz. Mas as hastes das letras estão mudas, o rolo está mudo, mudo o papel branco. Diante dela há uma cadeira vazia, muito baixa. E o pediatra fica sem entender como uma máquina de escrever produz ameaça de escrita sem mãos para tocá-la.”
A segunda morte dos girassóis
Cintia Moscovich
“Tirei meu lenço de algodão do pescoço e, com ele, fiz uma tala para dar suporte à flor, amarrando-a com jeito e cuidado na dura polpa da espada. Cheguei a considerar que era um dispositivo meio grosseiro para tanta delicadeza, mas era a única solução naquele momento e naquelas condições. Foi assim que entreguei o moribundo a Deus.”
Cachorro
Cristiano Baldi
“A dor doía até as nuvens e para os lados e para baixo, por entre o asfalto e depois a terra e depois as rochas, até o núcleo do planeta. De repente, uma mulher se aproximou e, cheia de piedade, olhou para o cachorro. Trazia um saco de veludo encarnado, de onde tirou um feto pulsante. E ofereceu o feto ao cachorro.”
Imagino Caio
Natália Borges Polesso
“Caio, a humanidade se mantém viva com atos bestiais. Eu sei, ele me diz. Mas tu grava pra mim? Grava tudo sem pena, sem dó, grava o bom e o ruim, grava o bestial e o divino, grava tudo? Diante de um pedido daqueles, Caio ajoelhado, sem sapatos, queixo nos meus joelhos, pedindo. Eu digo, gravo. Não posso negar.”