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Domingo é dia de culto. Pelas 10h, começa a chegar gente no número 1.058 da Avenida João Pessoa. Passam pelo portão de ferro, sobem 13 degraus e entram no prédio neoclássico da década de 1920, que cheira a madeira antiga e naftalina. A liturgia pode soar familiar aos cristãos — depois de um pouco de música, um homem para junto a um pequeno altar e faz leitura de um catecismo de páginas amareladas.
Mas, com olhar um pouco mais atento, você percebe que essa igreja não tem a ver com Deus. Ou até tem, mas como um de tantos objetos de estudo. O busto de São Paulo está pendurado ao lado do de Aristóteles, do imperador César, do inventor Johannes Gutenberg e até de Dante Alighieri, autor de a Divina Comédia. Você também vai ler palavras como "cosmologia", "biologia" e "lógica" escritas nas paredes.
O último templo positivista em atividade no país (e provavelmente o último do mundo) fica em Porto Alegre, ao lado da Redenção. Ali se pratica a Religião da Humanidade, que, assim como a planta desse prédio, foi criada pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). Trata-se de uma igreja que tem a ciência como dogma.
— A genialidade dessa doutrina está em não limitar o ser humano. Em vez de escravizar a mente humana, como muitas religiões já fizeram, ela a expande — diz Érlon Jacques de Oliveira, atual guardião (diretor) do templo.
Embora muitos acreditem que o Positivismo se restringe a uma filosofia, Comte fez questão de dizer que "os verdadeiros positivistas são os que aderirem à Religião da Humanidade", destaca Érlon. Porque sabia que as doutrinas políticas, sociológicas ou filosóficas são aceitas pela racionalidade e tendem a desaparecer. Já as religiões, reconhecidas pelo emocional humano, não necessariamente têm prazo de validade.
Tombado pelo município e pelo Estado, com arquitetura inspirada no Panteão, de Roma, o templo é um prédio pedagógico. Cada detalhe estimula o conhecimento e revisa algum preceito de Comte. A inscrição sobre o portão de entrada, por exemplo ("Os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos"), não remete de maneira alguma a algo místico ou sobrenatural. É, segundo Érlon, reverência à ancestralidade e à continuidade social do conhecimento.
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Nos degraus, há palavras relacionadas a forças de trabalho (como proletariado), à religião (como fetichismo) e relações afetivas (como cazamento, ainda com z, em grafia antiga). Érlon destaca que, em um período de casamentos arranjados, Comte era favorável ao matrimônio por decisão dos noivos, além de acreditar que a mulher é mais aperfeiçoada que o homem por dar à luz.
Pelo menos uma das frases da fachada, você certamente conhece: Ordem e Progresso. Vem do Positivismo o lema gravado na bandeira do Brasil. Acima de outra das três portas está escrito Viver para Outrem, que remete à altruísmo, termo criado pelo filósofo francês.
Dentro do prédio, uma das coisas que mais chamam atenção são os bustos na parede. Para cada um dos 13 meses do calendário positivista (matematicamente perfeitos, com 28 dias cada um) há um representando uma área de conhecimento. O primeiro, por exemplo, é de Moisés, "chefe" do mês que tem outros 27 grandes teólogos da antiguidade. Incluindo Heloísa, representante da glorificação feminina, o calendário tem 365 sábios a serem estudados, um para cada dia do ano.
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O rosto da Humanidade, em pintura no altar, foi inspirado em Clotilde, a musa de Comte. Érlon conta que ela era aluna do filósofo e, no auge da paixão platônica dos dois, morreu de tuberculose. O prédio ainda é composto por uma biblioteca, no subsolo, e pelo Bosque Sagrado nos fundos, espécie de cemitério onde são depositados os restos mortais de positivistas depois de sete anos de sua "transformação" (o termo morte não é usado).
O templo já foi visitado pelo menos três vezes pelo francês Michel Maffesoli, um dos principais sociólogos da atualidade, e a foto do lugar abriu uma exposição sobre agnósticos no Vaticano. É possível que tenha nome mais conhecido fora do Brasil do que aqui, acredita Érlon.
— Santo de casa não faz milagre — ri.
Os cultos, ou melhor, "prédicas sociocráticas" com visitas guiadas, ocorrem todos os domingos, das 10h às 13h, e são abertos ao público. Não é cobrado pela participação, nem dízimo dos fiéis (ou confrades e confreiras, como chamam, que ainda são centenas na Capital, estima Érlon). Para manter o templo aberto e realizar eventuais consertos — é possível ver problemas no forro e rachaduras no prédio —, os positivistas contam com campanha de doações. Quem quiser ajudar, pode escrever para o e-mail templopositivista@gmail.com. Não há site para contribuições.
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