A disputa entre a prefeitura de Porto Alegre e a União Social dos Empregados da Carris, a USE Carris, pela posse de um terreno que vinha sendo usado pela associação revela um histórico de descontrole com bens públicos. A companhia não só cedeu a área para uso de terceiros, o que não seria permitido, como gastou, entre 2006 e 2009, R$ 1 milhão para erguer um prédio com salão de festas e academia, além de quadra de futebol com grama sintética e estacionamento.
Também foi a Carris que equipou a academia. Entre os itens pagos pela companhia estão, por exemplo, mesa de bilhar de R$ 1,2 mil, bicicleta horizontal de R$ 3,2 mil, esteira de R$ 6,5 mil e balança eletrônica de R$ 1,1 mil. Foram gastos em torno de R$ 55 mil nos equipamentos. A Carris agora vai instaurar sindicância para apurar eventuais ilegalidades na cedência do terreno e no gasto de R$ 1 milhão na estrutura.
Conforme a procuradoria jurídica da companhia, o investimento feito pela Carris não seria ilegal, desde que as decisões dos administradores fossem baseadas no bem comum e em cumprimento ao papel social da empresa. Segundo o procurador Leonardo Marques, a empresa, que é de economia mista, tem autonomia para gastar na construção de sede social em prol dos empregados.
O problema estaria no fato de que o espaço não era de livre acesso a todos os empregados da companhia, mas sim restrito aos associados da USE Carris, que também desembolsavam para usá-lo. Além disso, a associação passou a fazer locações a terceiros do salão de festas e da quadra, o que caracteriza, segundo a procuradoria, exploração comercial da estrutura e resultaria em ganhos em cima de um imóvel público.
Com a reintegração de posse do terreno ordenada pela Justiça em favor da prefeitura no dia 24 de maio, a USE Carris reagiu, sustentando que tudo foi construído com doações e que exigirá do Executivo municipal ressarcimento por benfeitorias no terreno. Mas nem a Carris nem a associação dos empregados sabem dizer o quanto foi bancado por doações à época da obra.
Na sede social existe até placa com a lista de doadores, mas o controle do que cada um deu – seja em dinheiro ou diretamente em materiais – não foi localizado pela atual gestão. Só há registro do que saiu do caixa da própria Carris. O investimento da companhia na construção teve aval do conselho de administração, que definiu até o valor que seria usado: R$ 800 mil. Mas notas fiscais existentes na contabilidade mostram que o gasto ultrapassou o valor autorizado.
O terreno alvo de disputa foi cedido em 2004 pela prefeitura à Carris, que não poderia repassá-lo a terceiros e devia usá-lo para atividades próprias da companhia, conforme registrado no termo de cedência. Mas a estatal repassou o imóvel à USE Carris, investiu na construção da sede social e passou tudo para controle da associação.
– Pela função social da empresa ela pode disponibilizar espaço de suas estruturas a todo o seu quadro. A Carris poderia até cobrar uma taxa de manutenção da estrutura, mas nunca restringir o acesso à sede social. Ela teria que administrar o espaço ou terceirizar para a associação por meio de convênios, mas o acesso teria de ser para todos – diz Marques.
Ao ingressar com pedido de reintegração de posse, a prefeitura sustentou que a USE Carris estava tendo enriquecimento ilícito ao explorar o espaço comercialmente. Na última quinta-feira, a associação dos empregados recorreu da decisão de reintegração. O ex-presidente da USE Carris e atual diretor financeiro, Cristiano Paim, garante que nunca houve lucro com as locações.
– A contribuição dos associados rende R$ 16 mil por mês e a manutenção da estrutura chega a R$ 23 mil. As cobranças feitas, as locações, eram só para cobrir essa manutenção. E o estacionamento, na minha gestão, nunca foi cobrado. Sempre foi para uso dos associados. Os nossos balancetes fecham sempre no prejuízo.
Quando cedeu o terreno à USE Carris, a companhia registrou em documento que caso o negócio fosse desfeito, a permissionária, no caso, a USE Carris, não teria direito à indenização de qualquer espécie. Questionado sobre essa previsão, Paim afirma:
– Esse termo de cedência é discutível na Justiça.
CONTRAPONTOS
O que diz Antônio Lorenzi, presidente da Carris entre 2005 e abril de 2010, quando o terreno foi cedido e a sede, construída:
“Não sei se houve cedência formal, oficial (do terreno). Mas não vejo problema. O problema é que depois, segundo vi na reportagem, a associação começou a utilizar aquele espaço, que era exclusivamente para funcionários, para locar para eventos, e isso não estava previsto no acordo que existia entre a Carris e a Associação. Foi construída a sede com tudo doado por fornecedores da Carris. O setor financeiro-administrativo contabilizava as doações que recebia dos fornecedores, não como entrada de dinheiro, mas colocava nos seus demonstrativos. Acho que não recebíamos (doações) em dinheiro. A Carris não gastou R$ 1 milhão, em absoluto. Duvido que tenha saída do caixa R$ 1 milhão. Não tem. Pode ter alguma coisa, mão de obra. A Carris tinha pedreiros contratados, pode ter sido empregado na construção daquela obra, mas não naquele valor.”
Depois de GaúchaZH ter acesso ao documento (imagem acima) que mostra que o Conselho de Administração da Carris, sob a presidência de Lorenzi, aprovou o gasto de R$ 800 mil na obra, o ex-presidente explicou:
“Lembrei que vendemos a folha de pagamento e recebemos em torno de R$ 3,5 milhões. E a orientação da prefeitura, na época, foi de que o valor não devia entrar no caixa da Carris, e sim ser investido em melhorias das condições para os funcionários. Então decidimos fazer três coisas: a sede da associação, uma creche (para a qual a prefeitura deu R$ 500 mil e que nunca foi concluída) e um prédio administrativo (também não concluído até hoje)."
O que diz Nelson de Godoy, presidente da USE Carris à época da cedência do terreno e da obra:
“A prefeitura cedeu o terreno para a Carris e a Carris cedeu para a gente fazer a associação ali. Nós fomos em todos os fornecedores da Carris, todo mundo ajudou um pouco. Foi arrecadada uma quantia. Uns doavam materiais, e outros, dinheiro. Na época, um diretor da Carris, engenheiro, que tomou conta de tudo isso aí. As doações vinham para a carris e para a associação. O telhado foi quase R$ 30 mil, a Ipiranga que deu. Da Carris, acredito que foram uns R$ 500 mil. Quem controlava a obra era o engenheiro da Carris. Tinha quatro funcionários profissionais, mestre e carpinteiro que nós que pagávamos, saímos atrás de sócios.”