Quem circula pelos postos de combustíveis de Porto Alegre, sobretudo aos finais de tarde, percebe que as latinhas e long necks reapareceram no ambiente. Mas, diferentemente do que ocorria até meados da década de 2000, o consumo não se dá mais em volta dos carros, onde amigos bebiam enquanto ouviam música e confraternizavam até a madrugada. Ele se dá de forma mais discreta, em mesas nas varandas de lojas de conveniência, que se tornam espécies de pubs improvisados.
Esse tipo de consumo vai de encontro à lei municipal (nº 9.996), que desde junho de 2006 proíbe "consumo de bebidas alcoólicas nas dependências de postos de gasolina, estacionamentos e similares localizados no município de Porto Alegre". Em caso de descumprimento, conforme decreto (nº 15.414) do então prefeito José Fogaça, o posto está sujeito a penalidades que vão de advertência até cassação do alvará de funcionamento. As multas previstas vão de R$ 877,19 a R$ 1.754,38.
Do ponto de vista legal, o comportamento se encontra em um limbo curioso. A polícia não considera esse tipo de consumo um problema, e a prefeitura não considera a fiscalização prioridade. Já a Câmara Municipal, embora tenha passado o ano apreciando em comissões legislativas um projeto de lei que revogaria a proibição, não está disposta a colocá-lo em votação.
Desde novembro passado, o projeto de revogação (PLL 214/2017) está pronto para ir a plenário. Mas o autor, o vereador Valter Nagelstein (PMDB), é enfático ao dizer que não está entre as prioridades ver o texto apreciado pelos colegas:
– É que sempre que esse assunto vem à tona, sou mal-interpretado. De modo algum a intenção do projeto é estimular álcool e direção. A justificativa é que a punição está equivocada. O posto não deveria ser penalizado por um comportamento que é do cliente, não dele. Se depender de mim, esse projeto não vai a votação sem que antes se faça uma ampla discussão com a sociedade. Como não consegui fazer isso enquanto presidi a Câmara (entre 2017 e 2018), agora ficou ainda mais improvável – declara o vereador.
Coincidentemente, a atual presidente da Câmara, Monica Leal (PP), presidiu uma das comissões que avaliou o projeto de revogação em 2018, a Comissão de Defesa do Consumidor, Direitos Humanos e Segurança Urbana. O parecer foi contrário ao projeto de revogação com o argumento de que "tornar-se-ia temerária" em razão de postos serem ambientes que "requerem cuidados extremos devido sua periculosidade".
Segundo João Carlos Dal'Aqua, presidente do Sindicato dos Postos de Combustíveis (Sulpetro), a lei que responsabiliza os postos sempre foi considerada injusta pelos empresários, porém, eles tiveram bons motivos para defendê-la à época:
– O pessoal ficava em torno dos carros em postos, nem sequer comprava a bebida nas conveniências e ainda atrapalhava o movimento nas bombas. Eles traziam as bebidas para consumir nos postos. A proibição serviu para que os empresários tivessem uma justificativa para coibir isso junto aos clientes. Como esse comportamento mudou, a legislação agora poderia ser modernizada.
Dal'Aqua cita mudanças na sociedade que colaboraram para o fim do aglomeramento em postos. Elas passam pelo transporte por aplicativo, que barateou deslocamentos sem carro, e pela aplicação rigorosa da Lei Seca. Até mesmo o som, antes automotivo, migrou para as caixinhas comandadas via bluetooth pelos telefones. A opinião vai ao encontro do que diz Luis Antônio Steglich, diretor de Promoção Econômica da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico, órgão que herdou da antiga Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic) a atribuição de fiscalizar a aplicação da lei.
– O álcool nunca foi o real alvo dessa lei. O problema era a festa. A fiscalização é complicada. Seria preciso que agentes da prefeitura testemunhassem o consumo para, então, autuar o posto. Mas ninguém tem denunciado ou reclamado disso nos últimos anos. Hoje, temos outras prioridades: aglomerações e exageros com bebida em outros pontos – entende Luis Antônio, citando casos como o das mortes ocorridas na Rua João Alfredo, na Cidade Baixa, em janeiro.
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico não soube informar qual foi a última vez em que um posto de combustíveis foi autuado por consumo de bebida nas dependências. O tenente-coronel Rodrigo Mohr Picon, que assumiu o Comando do Policiamento da Capital (CPC), também relata como "muito raras" ocorrências recentes de perturbação da ordem em torno de postos. Mesmo assim, Mohr chama a atenção para o caráter preventivo da lei.
– No Brasil, a legislação é vista como algo mais reativo do que preventivo. Naquela época, a lei veio para coibir um comportamento que estava causando problemas. Com o tempo, a aplicação da regra vai afrouxando e sendo esquecida, mesmo que ainda possa ser importante para prevenir algo. Então, não sei se seria o caso de revogar.
Por ora, a questão fica assim: a lei existe, mas ninguém está disposto a aplicá-la. Ou a derrubá-la.