Um mês depois de a Polícia Civil deflagrar a Operação Pau Oco, que apura fraude na concessão de bônus-moradia e aluguel social na Vila Cruzeiro do Sul, em Porto Alegre, a dona de casa que se tornou símbolo do calvário das vítimas recebeu uma notificação de "despejo" do Departamento Municipal de Habitação (Demhab).
Lourdes de Jesus Santos, analfabeta, alega ter sido enganada em um processo de permuta, mora pagando aluguel e diz ter recebido de funcionários do Demhab autorização para construir uma casa em um terreno que teria sobrado das obras da Copa 2014.
Há um mês, ela repetiu essa história em diversas entrevistas que concedeu ao contar seu drama. À época, GaúchaZH questionou o Demhab sobre a situação do terreno dado de "boca" e no qual Lourdes e a família recém começavam a erguer uma casa. A direção do departamento afirmou desconhecer a doação e disse que o caso seria apurado. Uma sindicância foi aberta, já que há funcionários do órgão sob suspeita nas investigações da polícia. Mas Lourdes nunca foi chamada a prestar esclarecimentos no Demhab. E, agora, com a construção concluída, ela recebeu a notícia de despejo.
Nesta sexta-feira (19), três funcionárias do departamento foram à residência dela e, como Lourdes não estava, teriam insistido para que a filha recebesse a notificação. O documento, assinado pelo diretor-adjunto do Demhab, Emerson Correa da Silva, informa que a dona de casa deve "providenciar a desocupação da área irregularmente ocupada, bem como a demolição de quaisquer construções efetuadas no local, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, a contar do recebimento da presente notificação".
— Isso foi uma bomba na minha cabeça. Gastei R$ 6,4 mil para erguer essa casa e preciso entrar para dentro, pois meu aluguel está atrasado e tenho que entregar a residência para o dono no dia 26. O que vou fazer agora? — lamenta a dona de casa.
O drama de Lourdes, analfabeta, mãe de seis filhos e aposentada por invalidez, começou quando aceitou fazer uma permuta com o bônus-moradia que recebeu do Demhab. Ela era uma das pessoas cadastradas no plano de mobilidade urbana para a Copa 2014, na região da Avenida Tronco. Como teve a residência atingida pela obra, tinha direito ao bônus.
Lourdes alega que um líder comunitário — também investigado pela polícia — teria intermediado a troca: ela repassou dois bônus-moradia a uma parente do líder e a mulher lhe cedeu uma casa na vila, onde Lourdes queria permanecer. Com os bônus, a mulher comprou uma casa em Viamão. Meses depois, no entanto, Lourdes teve o imóvel na vila retomado. Os envolvidos disseram que a permuta não "havia dado certo". Lourdes então ficou sem os bônus e sem residência. Ingressou com ações na Justiça para tentar reaver a casa em Viamão.
Quando teve a casa objeto da permuta retomada, Lourdes procurou o Demhab — que tinha conhecimento do negócio. Foi então que teria recebido a oferta de usar um terreno nas proximidades da Avenida Carlos Barbosa para construir uma casa. Uma das pessoas que teriam oferecido o terreno a Lourdes é justamente uma funcionária que atuava no escritório do Demhab na Avenida Tronco e que foi afastada da função depois de deflagrada a operação. Ela é investigada pela polícia por supostas irregularidades na concessão de benefícios.
O inquérito da Pau Oco tramita na Delegacia de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat). A sindicância aberta pelo Demhab tramita em sigilo. Também é verificada a suspeita de que Lourdes teria tido o nome usado para o desvio de nove bônus-moradia.
O que diz o Demhab por meio de nota
"A notificação emitida pelo Departamento Municipal de Habitação (Demhab) diz respeito a uma construção em área irregular, considerada ocupação ilegal, em que a proprietária da obra não apresentou nenhuma documentação que comprove a autorização para a referida obra. Embora envolva a mesma pessoa incluída em sindicância referente ao Bônus Moradia, uma ação não tem nada a ver com a outra. São ações separadas. O fato da dona Lourdes ter problema com o bônus-moradia não dá ela o direito de construir em um terreno irregular. Nenhum servidor da Prefeitura tem autoridade para ceder um próprio (terreno) da Prefeitura para quem quer que seja. Não existe cedência verbal. É preciso abrir um processo. Até o momento não foi apresentado nenhum documento por parte da dona Lourdes que comprove a cedência ou posse do terreno. A dona Lourdes está na lista e deverá ser ouvida nos próximos dias de acordo com o fluxo de oitivas da sindicância".