— Mal dá pra comer.
É assim que Vanessa Barbosa, 35 anos, resume sua situação financeira nos últimos meses. Ela diz que, trabalhando na Unidade de Triagem do Campo da Tuca, em Porto Alegre, faturou R$ 800 em abril, pouco mais da metade dos R$ 1,5 mil que recebeu em dezembro.
O lixo é a única fonte de renda de Vanessa, que trabalha como catadora desde os 14 anos. Para sustentar os três filhos — um menino de seis anos, uma adolescente de 16 e um jovem de 18 —, ela conta com a ajuda dos vizinhos da comunidade:
— A gente tira um pouquinho ali, um pouquinho aqui para poder comprar a comida. Graças a Deus, não chegamos a passar fome. O pessoal da Tuca é muito unido.
A quantidade de trabalhadores nos galpões conveniados com a prefeitura de Porto Alegre, que separam os resíduos recolhidos na coleta seletiva do DMLU, também vem caindo. De acordo com o coordenador do Fórum de Unidades de Triagem, Antônio Matos, o número diminuiu de 800 para 600 pessoas nos últimos dois anos. Na Unidade de Triagem do Campo da Tuca, por exemplo, caiu de 54 para 25 pessoas, e 40 estão em uma lista de espera para trabalhar. Ele aponta dois motivos: falta de pagamentos da prefeitura para a manutenção dos locais, no valor de R$ 2,5 mil mensais, e baixa quantidade de material recebido devido à "coleta seletiva clandestina" — gente que recolhe o lixo e vende os recicláveis por conta própria antes dos caminhões oficiais.
— Os cestos de resíduos estão cada vez mais vazios. Como não tem trabalho, as pessoas acabam saindo dos convênios para sustentar a família de outra forma, embora a maioria não tenha estudo — afirma Matos.
Relatos como os de Vanessa e Matos foram feitos por representantes das 17 unidades de triagem espalhadas por Porto Alegre à Câmara Municipal. Na semana passada, foi feita a primeira reunião, que se repetirá nesta quarta (30).
Segundo o coordenador da Unidade de Triagem Anjos da Ecologia, Juliano Alex Goularte dos Reis, a prefeitura não paga o valor devido há oito meses, mas a prestação de contas do local está em dia:
— Ficamos sem luz durante duas semanas. O DMLU sabia, mas não fez nada. Estamos fazendo contas para sustentar o nosso local de trabalho, coisa que a prefeitura deveria fazer.
Já a coordenadora da Cooperativa de Educação Ambiental e Reciclagem Sepé Tiaraju, Núbia Vargas, questionou a fiscalização da prefeitura sobre o serviço prestado pela Cooperativa de Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre (Cootravipa), responsável pela coleta de lixo na Capital. Ela afirmou que o material recebido é de péssima qualidade, sendo impróprio para o trabalho:
Somos os mais fracos, queremos ser ouvidos
NÚBIA VARGAS
Coordenadora da Cooperativa de Educação Ambiental e Reciclagem Sepé Tiaraju
— Algum setor do DMLU não está fiscalizando direito o trabalho da Cootravipa. Estamos passando pela maior crise de coleta seletiva dos últimos anos. Nos sentimos sozinhos, sem nenhum órgão prestando atenção na gente. Somos os mais fracos, queremos ser ouvidos.
DMLU diz que encontrou irregularidades em contratos
Ao responder as críticas, o diretor-geral do DMLU, René José Machado de Souza, ressaltou que, quando assumiu a direção do departamento, em agosto de 2017, precisou revisar todos os contratos feitos nos governos anteriores, incluindo os convênios com as unidades de triagem, atrasando o pagamento. Nessas revisões, teriam sido constatadas "irregularidades" nas documentações, ocasionando ainda mais demora. Além disso, Souza ressaltou que depende da Secretaria Municipal da Fazenda para efetuar os repasses:
— Não temos autonomia, pois 99% da verba vem da Fazenda, pela arrecadação da Taxa de Lixo do IPTU. Eles estão segurando ao máximo o dinheiro.
Souza diz que a quantidade de lixo reciclável coletado pela Cootravipa não diminuiu tanto:
— Estamos fazendo melhorias constantes na fiscalização. Vamos analisar as reclamações, mas é fato que estamos produzindo menos lixo. Mudamos (a sociedade) nossos hábitos com a crise econômica, não consumimos tantos embalados. Não caiu tanto quanto os catadores alegaram.
Números comprovam queda
Os números da Unidade de Triagem Campo da Tuca começaram a preocupar a todos a partir de meados 2016. De lá pra cá, a quantidade de material caiu 30% e o número de recicladores foi reduzido pela metade.
Material recebido em todas 17 Unidades de Triagem:
2014 - 27 mil toneladas
2015 - 28 mil toneladas
2016 -21 mil toneladas
2017 - 20 mil toneladas
Fonte: Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU)
Material recebido na Unidade de Triagem Campo da Tuca:
Abril 2016 - 88 toneladas
Abril 2017 - 63 toneladas
Abril 2018 - 62 toneladas
Fonte: Unidade de Triagem Campo da Tuca
Para Cootravipa, crítica é "maldosa"
Por telefone, a presidente da Cootravipa, Imanjara de Paula, mostrou-se surpresa com as críticas dos recicladores. Embora afirme que a coleta seletiva esteja passando por uma crise, ela ressaltou que isso não ocorre devido a irregularidades no serviço:
— O que menos tem é falha na coleta. Dizer que estamos fazendo uma coleta seletiva ruim e que, por isso, não têm resíduos suficientes é uma desculpa porque as unidades estão desesperadas. Somos solidários quanto a isso. Mas essa afirmação, além de ser equivocada, é maldosa. Quero crer que isso é a opinião de uma minoria equivocada, sempre trabalhamos em conjunto.
Imanjara explica que o pagamento do contrato feito com a prefeitura é feito por rotas, e que todos os caminhões são monitorados por GPS assim que saem da garagem. A cooperativa acompanha se os funcionários estão coletando o lixo ou não a partir de denúncias de moradores por meio do telefone 156 e pelo histórico de quantidade de lixo coletada em cada bairro: caso uma região registre um valor muito diferente da média, a Cootravipa e o DMLU visitam o local para averiguar o serviço.
Para debater os repasses financeiros às unidades, a fiscalização da coleta seletiva e criar uma oficina de prestação de contas e documentação, o presidente da Câmara Municipal, Valter Nagelstein (MDB), propôs uma nova reunião para a próxima quarta-feira (30), às 17h, no Legislativo. Serão convidados também representantes da Cootravipa e da Secretaria da Fazenda para dar esclarecimentos.
Onde denunciar
Caso algum morador constate coletas clandestinas de resíduos recicláveis, deve ser feita uma denúncia pelo telefone 156 ou pelo email dmlu@dmlu.prefpoa.com.br. A população pode auxiliar o fiscal com o envio de fotos e vídeos. Quando a situação é identificada como irregular, a infração é considerada gravíssima, com multa de R$ 5.780,88.
Segundo a Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, foram recolhidos pelo menos 60 veículos de coleta clandestina de lixo reciclável desde setembro do ano passado. A pasta afirma também que a Brigada Militar emitiu 150 multas durante o período.