Sentada à uma mesa oval com três copos servidos à metade e um prato com biscoito à frente, Vanessa Venturi pega uma das taças, aproxima do nariz, cheira, reflete, toma um gole, fixa o olhar em um ponto cego, baixa a cabeça e destaca em uma tabela: odor levemente irritante, notas moderadas de cloro e sabor sutilmente metálico.
O líquido que despertou essas impressões da química de 31 anos é ainda mais popular do que vinho ou cerveja. Mas, para a maioria, costuma ser encarado como algo desprovido de cheiro ou sabor. Vanessa é uma das 22 pessoas capacitadas pelo Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) para degustar e analisar a água que chega às torneiras da população de Porto Alegre.
Realizados desde 2013, os chamados painéis sensoriais reúnem, semanalmente, cerca de cinco técnicos do órgão para provar amostras de água de diferentes estações de tratamento do Dmae, verificar se estão dentro dos padrões estabelecidos pela legislação e gerar dados para o monitoramento da qualidade da água consumida na Capital. O Ministério da Saúde exige que esse tipo de atividade seja feita apenas a cada seis meses, mas, em busca de uma certificação de qualidade superior – e para manter os avaliadores afiados –, Porto Alegre adotou a prática semanalmente.
Um roteiro preestabelecido
As sessões de degustação dos "sommeliers" de água do Dmae têm roteiro preestabelecido: o químico Tiago Weber organiza um painel com cinco amostras, uma de água bruta do Guaíba – usada apenas para análise de odores –, uma de água pura – sem cloro ou sais minerais, para limpar o paladar – e três amostras de água tratada. Para testar o discernimento dos participantes, uma das provas é "batizada" pelo organizador do painel com alguma substância fora dos padrões. Café para limpar o olfato e um biscoito sem sal para limpar o paladar ficam à disposição dos profissionais.
Antes de serem degustadas, em copos de vidro comuns, todas as amostras passam por um banho-maria durante cerca de duas horas. Elas devem chegar à mesa todas com a mesma temperatura, em torno de 25ºC. O papel dos avaliadores é identificar características de odor e sabor distribuídas em oito grupos, que vão desde a percepção de terra ou mofo e a presença de cloro, até aromas que lembram grama, feno, palha, pântano, vegetais ou flores, peixe e álcool até produtos químicos. Diferentemente de uma degustação de vinho, por exemplo, aspectos visuais não são levados em consideração.
Quando o líquido é adequado para consumo
Para cada uma das categorias, é atribuído um valor, um número par de dois (limiar) a 12 (forte) que indica a intensidade percebida pelo avaliador ao cheirar e tomar a água – uma espécie de mapa da língua, mostrando como as papilas gustativas identificam os sabores, é fixado à parede e à mesa para ser consultado em caso de dúvida. O líquido é considerado adequado ao consumo quando nenhum dos itens, à exceção do cloro – usado para desinfecção – ultrapassa o número seis.
— É importante desfazer esse mito de que a água precisa ser insípida e inodora. A água têm sabor. No caso da tratada, é normal predominar um gosto de cloro, mais adstringente, às vezes até um pouco metálico — explica Weber.
Após todos provarem a escreverem sobre as amostras, todas as notas são levadas a um quadro para que seja feita uma média, que é o dado considerado válido no dia do painel. Na terça-feira em que a reportagem acompanhou o trabalho do painel sensorial, que leva cerca de uma hora, a água tratada pela estação José Loureiro da Silva, que abastece 45% da cidade, não chegou a surpreender: a percepção do cloro foi considerada de fraca a moderada pelo grupo. A água bruta do Guaíba, como de costume, mostrou-se bem menos agradável: em seu odor, predominava o cheiro de terra, e uma fragrância mais sutil que remetia a enxofre. Tudo dentro dos conformes.
— É difícil ter uma alteração mais significativa. Mas às vezes já sabemos até de que estação vem. A água da Ilha da Pintada, que vem do Jacuí, por exemplo, tem aromas que puxam mais para o floral e para o frutado... O tratamento é exatamente o mesmo, mas a interação da água bruta com a flora ou a carga de matéria orgânica que recebe provocam diferenças — conta a química Vanessa, única que já havia tido experiência prévia com degustação em uma fábrica de cervejas.
Treinamento intensivo para obter as sensações
Se hoje alguns funcionários do Dmae são capazes de identificar alterações muito sutis, quando o assunto ainda era novidade, a frustração era sentimento comum após as degustações. Treinados por dois técnicos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) de forma intensiva durante uma semana, os degustadores do Dmae tiverem de aprender do zero a reconhecer e relacionar o que percebiam com o nariz e a língua a conceitos específicos, como adstringência – que provoca sensação de "repuxamento" – e oleosidade, por exemplo.
— Da primeira vez, achava que não tinha nada de diferente. Aos poucos, fomos aprendendo a perceber e a relacionar as coisas — conta o coordenador dos painéis, que por vezes propõe atividades "lúdicas", como degustação de chocolate, para aumentar a gama de sabores reconhecidos pelos painelistas.
Com a nova rotina estabelecida, cada vez mais, é natural os degustadores do Dmae transferirem as habilidades adquiridas no trabalho para o dia a dia. Tomar água, em casa ou em restaurantes, é uma experiência que começa quase sempre com o nariz, reflexo da prática realizada durante os painéis. Também houve quem se interessasse em direcionar o paladar treinado para outras áreas, buscando cursos de degustação de vinhos e cervejas.
— A gente começa a perceber umas coisas engraçadas. Tipo essas águas gourmet que as pessoas compram. Elas são mais ricas em alguns minerais, mas ficam com o gosto deles. As sulforosas, por exemplo, têm cheiro de enxofre. Não gosto dessas — sorri Weber.
Caso de água alterada intensificou painéis em 10 vezes
Os "sommeliers" não convencionais do Dmae tiveram papel importante quando, no ano passado, uma substância até hoje desconhecida provocou alterações no cheiro e no sabor da água em Porto Alegre. Eles foram os primeiros a identificar, dias antes de os consumidores, um odor incomum nas amostras de água bruta.
— Teve um dia que um técnico voltou da captação dizendo que a água estava com um cheiro "engraçado". Quando tivemos contato com ela, chamamos vários colegas para experimentarem, mas ninguém sabia identificar o que era — lembra Vanessa Venturi.
Mesmo com o cheiro e o gosto alterados, a água atendia às exigências do Ministério da Saúde e era considerada potável. Duas situações, porém, intrigaram o painel sensorial: as reclamações da população que, em um período em que mal chegariam a uma dezena ultrapassaram 300, e a curiosidade dos técnicos, que colocaram como meta desvendar o que causava as mudanças, até então inéditas.
A situação mobilizou diversos setores do Dmae. Para que se chegasse o mais perto possível do epicentro do problema, foram feitas captações de água em diversos pontos do Guaíba, e os painelistas passaram a trabalhar em regime de força-tarefa. Em vez do costumeiro encontro semanal, eles se dividiram em equipes e passaram a se reunir duas vezes ao dia, por duas semanas.
As exaustivas sessões investigativas não encerraram a questão, mas fecharam o cerco: os painéis confirmaram as suspeitas sobre o ponto de onde vinha a água mais alterada – nas proximidades da empresa Cettraliq, que hoje é processada pelo departamento – e identificaram o grupo que teria influência sobre as alterações. De acordo com o que farejaram os técnicos, o que provocava o cheiro de mofo percebido por boa parte da população seria produto de substâncias químicas ou hidrocarbonetos.
As respostas que nunca vieram esbarraram no refinamento científico: a gama de possibilidades era muito abrangente, e, em contrapartida, a concentração da substância que foi capaz de provocar as mudanças era pequena demais até mesmo para equipamentos sofisticados detectarem. Apesar dos esforços, não foi possível chegar à definição exata do causador do problema.
— Foi um pouco frustrante. A parte sensorial a gente até despreza um pouco na faculdade, porque não tem essa coisa mais científica, de comprovar os fatos. Depois a gente amadurece e vai vendo que as coisas objetivas também aparecem ali — reflete Vanessa.