O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta terça-feira (25) o julgamento que pode descriminalizar o uso pessoal de maconha. O placar está em cinco a três para extinguir a punibilidade do crime, estabelecendo uma quantidade fixa da substância para diferenciar o consumo próprio da prática de tráfico. Entre as duas teses em debate, há ainda uma terceira vertente, inaugurada pelo voto do ministro Dias Toffoli, o último a se posicionar no julgamento. Ainda restam os votos dos ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia.
O debate trata da aplicação do artigo 28 da Lei de Drogas, ou Antidrogas (Lei 11.343/2006), que prevê sanções alternativas – como medidas educativas, advertência e prestação de serviços – para a compra, porte, transporte ou guarda de drogas para consumo pessoal.
A votação começou em 2015 e tinha sido paralisada pela última vez em agosto de 2023, quando o ministro André Mendonça solicitou mais tempo para avaliar o processo. O julgamento foi novamente interrompido por um pedido de vista, agora do ministro Dias Toffoli.
Como uma reação à retomada da discussão do tema no Supremo, o Congresso analisa uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que criminaliza o porte de qualquer quantidade de drogas. A proposta agora será analisada em uma comissão especial da Câmara dos Deputados antes de poder ir a plenário.
Entenda os principais pontos sobre a discussão
O que o STF está debatendo?
O Supremo julga a constitucionalidade do artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006), que criou a figura do usuário, diferenciado do traficante. A Corte busca chegar a um entendimento se o porte de maconha para consumo próprio pode ou não ser considerado crime e qual a quantidade da droga diferenciará o usuário do traficante.
Atualmente, a lei não apresenta diretrizes objetivas sobre a quantidade de droga que faz alguém ser enquadrado como usuário ou como traficante. No entanto, a lei prevê punições diferentes para esses dois grupos.
Para usuários, a norma prevê penas alternativas de prestação de serviços à comunidade, advertência sobre os efeitos das drogas e comparecimento obrigatório a curso educativo para quem adquirir, transportar ou portar drogas para consumo pessoal. Enquanto para traficantes a reclusão pode ser de cinco a 15 anos, além de multas.
Apesar de deixar de prever a prisão dos usuários, a lei, que passou a vigorar em 2006 e instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, manteve a criminalização dos usuários, que podem ser alvos de inquérito policial e processos judiciais.
O que motivou o julgamento?
O julgamento foi motivado por um caso ocorrido em São Paulo, em que a Defensoria Pública questionou a condenação de um homem a dois meses de serviços comunitários pelo porte de três gramas de maconha. A defesa argumentou que o fato não implicaria em danos a bens jurídicos alheios ou à saúde pública, e pediu que o porte de maconha para uso próprio fosse deixado de ser considerado crime.
O caso tem repercussão geral, ou seja, a decisão da Corte a respeito deste caso deverá ser aplicada pelas outras instâncias da Justiça.
Como está a votação no Supremo?
Até o momento, votaram a favor de descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal os ministros Gilmar Mendes, relator da ação, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. André Mendonça, Kassio Nunes Marques e Cristiano Zanin divergiram da interpretação.
Toffoli inaugurou uma terceira tese, presumindo que a legislação atual não estipula o porte de drogas para uso pessoal como um crime. Ao mesmo tempo, considerou que há uma insegurança jurídica na Lei de Drogas e determinou que o Executivo e o Legislativo criem, no prazo de 18 meses, uma política pública capaz de distinguir as condutas de tráfico e consumo pessoal.
Ainda faltam votar os ministros Luiz Fux e Cármen Lúcia. O ministro Flávio Dino não vota, já que sua antecessora, Rosa Weber, já havia participado do julgamento.
Quais são os argumentos contrários e favoráveis?
Os ministros favoráveis à descriminalização argumentam que o uso de pequena quantidade de maconha é um direito de cada pessoa, com consequências individuais à saúde dos usuários. Também consideram que o fato de o porte ser crime aumenta o encarceramento de pessoas vulneráveis.
Já os ministros contrários avaliam que a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio pode estimular o vício e agravar o combate às drogas no país. Além disso, alegam que a decisão do Supremo de tornar o ilícito administrativo pode criar uma lacuna sobre o tipo de punição e o responsável por aplicá-la.
Segundo a lei atual, porte e consumo de drogas são sempre ilegais?
De acordo com Vanessa Chiari Gonçalves, professora do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), qualquer pessoa que for pega com droga ilícita está sujeita às sanções da lei, sejam elas brandas ou mesmo a reclusão. Isso dependerá, segundo ela, de como a pessoa será classificada pelas autoridades.
— Qualquer cidadão que esteja portando droga ilícita está sujeito aos crimes. Isso só não se aplicaria aos servidores que apreenderam a droga e, por isso, estão portando ou às pessoas autorizadas judicialmente a cultivar muda para extrair medicamento no espaço doméstico — explica.
Qual é a orientação para as polícias em relação a quem está usando ou portando drogas em ambientes públicos ou privados?
Atualmente, a Lei das Drogas prevê a seguinte diferenciação:
- Usuário é quem "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas".
- Traficante é aquele que "importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente" .
Segundo Vanessa, apesar da diferenciação que a lei de 2006 apresenta no papel, o grande problema que está sendo discutido no STF é a aplicabilidade dela. A professora explica que, em razão das lacunas da lei, é comum que, por vezes, em uma abordagem policial seja difícil diferenciar se a pessoa está portando droga para uso próprio ou para venda.
— Não existem parâmetros seguros para diferenciar o porte para consumo pessoal do porte para distribuição para terceiros (tráfico). São critérios que os juízes foram construindo na prática. Os tribunais tendem a considerar a quantidade (de substâncias), a forma de acondicionamento da droga, o local onde foi apreendida e as condições pessoas de quem estava portando. O mesmo fazem os policias — diz.
Procurada pela reportagem de Zero Hora, a Brigada Militar (BM) informou, por meio de seu setor de Comunicação Social, que, para diferenciar a posse para consumo da suspeita de tráfico, em ocorrências de apreensão de drogas, são analisadas "a natureza, quantidade da substância apreendida, o local, condições em que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais e pessoais" do suspeito, inclusive os antecedentes policiais. No entanto, a corporação ressalta que mesmo uma pessoa com passagem anterior pela polícia, se pega com drogas ilícitas, pode ser enquadrada como usuário, caso a quantidade seja considerada pequena.
A BM também explica que, quando os policiais flagram a posse de narcóticos e avaliam que o objetivo é o consumo, eles registram o fato por meio de Termo Circunstanciado (TC), que pode ser confeccionado pelos próprios militares e é usado em crimes de menor potencial ofensivo. Quando há suspeita de tráfico, a pessoa flagrada precisa ser encaminhada a uma Delegacia de Polícia, para que o delegado avalie se há condições para uma prisão em flagrante.
Quais são os prejuízos que isso causa, segundo juristas?
De acordo com a jurista, essa brecha na lei colabora para problemas sociais, como o racismo, e dificulta o tratamento de dependentes químicos, que, em certos momentos, podem ser enquadrados como traficantes.
— Não há uma orientação clara (sobre como os policiais devem diferenciar usuário e traficante), por isso é comum que os preconceitos raciais e de classe falem mais alto. Essa falta de parâmetros prejudica os usuários e dependentes químicos mais pobres que, com frequência, são enquadrados como traficantes, com pena de reclusão de cinco a 15 anos — analisa.
O professor da escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Aury Lopes Junior, avalia que essa brecha da lei atual também permite que autoridades decidam, por conta própria, quem é traficante e quem é usuário.
— Qual a diferença entre usuário e traficante? A lei não estabelece um critério objetivo. Esse é o maior problema. A distinção é feita a partir do conjunto de circunstâncias, que envolve análise do contexto, da quantidade, da natureza e das circunstâncias. Isso é um grande problema porque gera uma discricionariedade absurda. Um jovem rico com 50 gramas de maconha é usuário. Um jovem pobre em um bairro da periferia, com 10 gramas pode ser rotulado de traficante. Fica na subjetividade de cada juiz e na análise caso a caso. Não existe segurança jurídica — analisa.
O que o Congresso está debatendo sobre consumo de drogas?
O Congresso passou a discutir, em setembro do ano passado, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023. Ela foi apresentada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A proposta foi uma resposta à retomada da votação por parte do STF sobre o tema.
A PEC insere no artigo 5º da Constituição Federal que "a lei considerará crime a posse e o porte, independentemente da quantidade, de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar".
O objetivo é reforçar, na lei, o entendimento de que é crime portar entorpecentes, em qualquer quantidade, mesmo que o entendimento do Supremo seja diferente ao final das discussões dos ministros. A proposta também prevê que deve ser feita uma "distinção entre o traficante e o usuário, aplicáveis a esse último penas alternativas à prisão e tratamento contra dependência".
Em que pé está a discussão no Congresso?
O Senado aprovou a PEC em dois turnos em abril. A medida recebeu 53 votos favoráveis e nove contrários dos senadores no primeiro turno, e 52 favoráveis e nove contrários no segundo. Depois, o texto seguiu para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, que aprovou a medida por 47 a 17. O texto ainda precisa passar por uma comissão especial e, depois, pelo Plenário, em dois turnos de votação.
Por que Congresso e Supremo estão debatendo o mesmo assunto ao mesmo tempo?
Segundo os juristas consultados pela reportagem, apesar das discussões do STF e do Congresso possuírem similaridade, o Supremo está tratando apenas da descriminalização da maconha. O Congresso, no entanto, trata de todos os entorpecentes atualmente ilícitos.
A eventual aprovação da PEC nas diferentes instâncias do Congresso não colocaria fim à discussão do que está sendo tratado no STF. O contrário também é válido.
— Eu entendo que o problema não será solucionado pelo Congresso, porque continuará havendo conflito entre normas constitucionais a serem resolvido pelo STF, que é o guardião da Constituição — analisa Vanessa Chiari Gonçalves.
O entendimento do professor da PUCRS é semelhante:
— (Caso a PEC seja aprovada e o tema do STF também, ela) com certeza será objeto de alguma ação declaratória de inconstitucionalidade e caberá ao STF julgar. Mesmo sendo uma emenda constitucional, poderá ser considerada inconstitucional pelo STF — explica Aury Lopes Junior.
Qual a diferença entre descriminalizar e legalizar?
Legalizar significa definir regras, como condições e restrições, para determinado tipo de conduta. O consumo de bebidas alcoólicas, por exemplo, é legalizado, prevendo cobrança de tributos e proibição de venda a menor de idade. Descriminalizar, por sua vez, quer dizer deixar de prever punição do ponto de vista criminal. A prática do grafite, por exemplo, deixou de ser crime em 2011.