Passados 20 anos desde a primeira vez em que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) subiu a rampa do Palácio do Planalto para assumir a Presidência da República, centenas de gaúchos se preparam para testemunhar em Brasília, no próximo domingo (31), a terceira posse do petista, eleito em outubro. Se em 2002 o sentimento predominante era de esperança e euforia, desta vez o clima é uma mistura de alívio com preocupação pelas ameaças de radicais bolsonaristas, que não aceitaram o resultado das urnas.
Conforme a direção estadual do Partido dos Trabalhadores (PT), pelo menos 15 ônibus devem partir de diferentes regiões do Rio Grande do Sul em direção a Brasília. A maioria dos coletivos iniciou o deslocamento nesta quinta-feira (29) com o objetivo de chegar à capital federal até sábado (31), a tempo de participar da festa de transmissão do cargo.
Se for considerada uma lotação média de 40 pessoas por ônibus, significa que pelo menos 600 gaúchos irão para a posse em Brasília — sem contar aqueles que foram de avião, carro, moto e até de bicicleta. Não há um número preciso de quantos militantes gaúchos estarão na posse porque cada uma as caravanas tem organização própria, sem vínculo direto com o partido.
Uma das caravanas partiu de Porto Alegre pouco antes das 20h desta quinta, no Haudi Park Estacionamento, ao lado da rodoviária. Animados, os militantes vestiam roupas vermelhas e carregavam toalhas com o rosto de Lula e bandeiras do PT e do Brasil. A coordenadora da excursão, a autônoma Cléo Rosa explica que os trajes e materiais de apoio ao presidente eleito estavam sendo utilizados apenas no embarque. A recomendação é para que os apoiadores usem roupas neutras e sem identificação durante as paradas em outros Estados, como forma de garantir a segurança e evitar o risco de confronto com grupos bolsonaristas.
— A viagem vai ser tranquila, as pessoas aos poucos vão se conhecendo. Sobre a segurança, estamos acreditando nas instituições — projeta Cléo.
Coordenadora estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia e filiada ao PT desde 1996, Karina Rocha é líder de outra excursão que partiu de Rio Grande com paradas previstas em Pelotas e Santa Maria. O ônibus com 52 pessoas deixou o sul do Estado nesta quinta-feira e a previsão é de que chegue a Brasília às 6h de sábado. Cada assento custou R$ 700, mas há passageiros que pagaram valores maiores como forma de ajudar militantes de menor poder aquisitivo.
— Essa caravana foi organizada com muita luta e solidariedade de todos. O custo é muito alto, mais de R$ 33 mil, fora a alimentação. E conseguimos fazer. Pelo Lula faço isso, viajar 40 horas — empolga-se a militante, que irá participar pela primeira vez de uma posse presidencial.
Alguns apoiadores que estão em viagem para Brasília estiveram na festa da posse em 1º de janeiro de 2003. É o caso da gestora de projetos ambientais Maristela Maffei, 57 anos, suplente de vereadora de Porto Alegre pelo PT. Ela conta que também esteve na vigília de Lula em Curitiba, quando o ex-presidente estava preso na carceragem da Polícia Federal, e diz que o sentimento agora é de esperança na retomada "da autonomia do país".
— Passa uma história pela cabeça. Naquela época a gente acreditava que podia, era um empoderamento muito grande, um estopim de felicidade. Achávamos que seria difícil, mas que não teria retrocesso, que só iríamos avançar. Depois vem o segundo mandato (de Lula), Dilma (Rousseff) e o impeachment. O que eu aprendi é que tudo é possível, mas o que não pode acontecer é parar. Precisamos estar em movimento — reflete Maristela.
A maioria das caravanas gaúchas partiu de Porto Alegre, mas há excursões saindo de Bagé, Erechim/Passo Fundo, Pelotas/Rio Grande, São Leopoldo, São Luiz Gonzaga e da Serra. Alguns organizadores relataram à reportagem de GZH preocupação com a segurança dos passageiros devido às ameaças de bolsonaristas e, por isso, os roteiros de viagem não são divulgados.
20 anos depois
Na edição de 29 de dezembro de 2002, há 20 anos, uma reportagem publicada por Zero Hora mostrava que 75 gaúchos partiriam em dois ônibus de Porto Alegre em direção a Brasília. Uma das excursões foi organizada por Janaína Aguillera, que hoje atua em um coletivo de voluntários que trabalha no suporte logístico da posse — o grupo ajuda a organizar a recepção das caravanas gaúchas e de outros Estados.
Na época, a passagem para a capital custou R$ 500 a cada militante. Segundo a calculadora do Banco Central, hoje o valor corresponde a R$ 1,6 mil, considerando a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
— Eu sempre fui militante, desde o grêmio estudantil, filiada ao PT. Eu era excursionista, então para mim parecia muito fácil juntar um monte de gente e viajar. Em 2002, (a posse) não tinha organização nenhuma, não tinha nem informação das coisas, tinha que comprar jornal e ouvir rádio, a informação não era tão fácil como é hoje. Não teve uma festa, não teve um show — compara.
GZH procurou pelas pessoas citadas na reportagem de 2002. A maioria respondeu que não irá para a terceira posse de Lula por diferentes motivos. Sob condição de anonimato, um dos entrevistados contou à reportagem que só votou no petista na eleição daquele ano e afastou-se de Lula nos pleitos seguintes em razão dos casos de corrupção, embora também não apoie Jair Bolsonaro (PL).
Profissional atuante no Direito Administrativo, Juliano Michielin Rodrigues, que na viagem tinha 14 anos, diz que não cogitou ir para a terceira posse de Lula, mas ainda é eleitor do futuro presidente.
— Lembro que estava todo mundo com muita esperança. Agora temos um país dividido, com mais problemas do que na época. Mas mantenho a esperança de que com o Lula as coisas melhorem.
Morador de Vera Cruz, município do Vale do Rio Pardo onde Lula obteve 43,3% dos votos contra 56,6% de Bolsonaro no segundo turno, o contador aposentado Roque João Beckenkamp, 82 anos, viajou para a posse há 20 anos ao lado do filho Carlos Augusto.
Roque conta que chegou a apoiar a Arena, o partido de sustentação da ditadura, após o golpe de 1964, mas logo decepcionou-se com as "crueldades" cometidas pelos militares e foi se "bandeando para o outro lado".
Hoje, o aposentado se define como uma pessoa com "tendência mais à esquerda". Ele ressalta que sempre votou nos candidatos à Presidência do PT desde 1989, embora nunca tenha se filiado à legenda.
— Eu ainda voto no Lula. Não sou fanático e acredito que, entre os dois últimos (Lula e Jair Bolsonaro), foi a melhor opção. Vejo nele uma pessoa mais humana, voltada mais ao povo. Estamos vendo que as diferenças sociais são cada vez maiores — analisa o aposentado.
Roque explica que, em 2002, já tinha decidido que iria para a posse em caso de vitória de Lula, e levou o filho para testemunhar o "ato histórico". Passados 20 anos, o apoiador lembra que "andou livremente pelo povão" e chegou a ver Lula de perto, passando no carro aberto.
Desta vez, porém, o aposentado vai assistir à festa pela TV. Roque chegou a procurar informações a respeito da passagem para ir a terceira posse de Lula. Teria a parceria de uma sobrinha para a aventura, mas o cansaço de uma longa viagem de ônibus e as dificuldades de uma excursão, como tomar banho em postos de gasolina, acabaram desestimulando o aposentado.
— Eu queria muito ir, mas na minha idade... Aquela vez fomos de ônibus, uma viagem muito longa. Eu tinha uma sobrinha aqui que me apoia muito, ela queria ir junto, mas no fim desistimos em função da insegurança, o que atualmente eu acho que está contornado — comenta Roque.
De moto para Brasília
Tão logo as urnas indicaram a vitória de Lula no segundo turno, o pastor Antônio Alves, 63 anos, decidiu que iria de moto para a posse em Brasília. Eleitor do petista desde o primeiro pleito presidencial com voto direto pós-ditadura, Alves partiu de Guaíba, na Região Metropolitana, ainda na quarta-feira (28) com a expectativa de chegar à capital na sexta à noite, onde ficará na casa de amigos pastores petistas. O plano é passear no sábado e sair cedo de casa, no domingo, para participar da festa.
O pastor da Igreja Metodista Institucional é motociclista e já faz viagens há décadas, mas se apressa em dizer que não participou de nenhuma motociata promovida por Bolsonaro. Alves conta que conheceu Lula na década de 1980, quando o então sindicalista visitou uma associação de moradores da Morada da Colina, em Guaíba. O líder espiritual cita a capacidade de conciliação como principal qualidade do presidente eleito.
— O que me fortaleceu é que meus colegas motociclistas disseram que não teria posse, que o Lula não subiria a rampa. E que as Forças Armadas iriam tomar o governo, que o Bolsonaro já tinha sido empossado e recebido a faixa pelo Superior Tribunal Militar. Em conversas com esses colegas, eu sempre dizia que vai ter posse, que Lula vai subir a rampa e eu vou para a posse — diverte-se Alves, que participa de um grupo de WhatsApp com motociclistas em que envia fotos de sua viagem.
Perguntado sobre a suposta proximidade entre evangélicos e o bolsonarismo, o pastor alega que a conexão não é observada nas bases da igreja. Alves afirma que, no meio pastoral, foram criadas "muitas falácias, mentiras, de que o comunismo ia tomar conta, de que seria proibido pregar o evangelho, de que iriam fechar igreja e obrigar o casamento gay". Ele atribuiu as "mentiras e inverdades" a uma "elite de lideranças evangélicas" e cita como exemplos os pastores Silas Malafaia, Marco Feliciano e Magno Malta.
— Essa elite de lideranças transformou os cultos das igrejas em palanque político. Tentaram tomar de assalto a fé e o coração das pessoas simples. E aí criaram um exército baseado em mentiras. Mas o evangélico que vai à igreja também pensa, ele também analisa. Não é como um rebanho de gado que vai empurrando mangueira adentro, não funciona dessa forma. O homem, a mulher e jovem, eles estudam, eles têm o poder de raciocinar— critica.
Casado e pai de três filhos, Alves planeja retornar de moto no dia 2 ou 3 de janeiro. Será a primeira posse presidencial.
2 mil quilômetros de bike para ver Lula
Entre o primeiro e o segundo turno, os amigos João Marcelo Pereira dos Santos, 57 anos, e Antônio Pedro Figueiredo, 63, fizeram uma espécie de aposta: se Lula vencesse, os dois fariam a aventura de ir até Brasília de bicicleta. Não deu outra.
— Quando Lula ganhou, o Pedro me liga e diz: “Vamos começar os preparativos” — conta João Marcelo, que é professor de História do Colégio Mesquita, em Porto Alegre.
Entre o resultado da eleição e a partida de Porto Alegre, em 28 de novembro, a dupla teve menos de um mês para preparar as bikes, planejar o roteiro, conseguir a liberação do trabalho e levantar R$ 9 mil para custear a viagem entre recursos próprios e contribuições de amigos. Os dois carregaram algumas mudas de roupa comum e de ciclista, ferramentas e câmaras de ar — em caso de emergência com a bicicleta — e sacos para dormir. Pararam em hotéis e pousadas próximos a rodovias e postos de combustíveis. Banho, só uma vez por dia.
João Marcelo saiu pela freeway e BR-101, costeando o litoral. Pedro foi pelo caminho mais curto, porém mais íngreme, via BR-116. Os dois se encontraram em Ponta Grossa, no Paraná, de onde seguiram juntos até a capital do país, onde chegaram na quarta-feira.
João Marcelo explica que o objetivo da empreitada, além de participar da posse, era observar a paisagem e conversar com as pessoas que encontrassem pelo caminho. Eles viajaram com roupas comuns de ciclistas, sem identificação partidária.
— Eu sou uma pessoa que defende a democracia e a inclusão social. Passamos por toda essa região do agronegócio, vimos plantação de soja, milho e cana de açúcar. Na divisa de São Paulo com Minas, tem plantação de abacaxi e laranja. A gente viu uma fartura de plantação agrícola. Aí nós entramos nas cidades e deparamos com a pobreza, nos postos (de combustíveis) vemos muitas pessoas pedindo coisas — analisa João Marcelo.
O professor de História confirma o temor pela radicalização de grupos bolsonaristas, mas pondera que "não pode se acovardar frente a uma situação de violência". A dupla espera "uma grande festa" no domingo — será a primeira posse presidencial de ambos.
Para o retorno, os amigos já decidiram que voltarão de ônibus. As bicicletas irão desmontadas, no bagageiro.
De carro com a família
De férias, os professores Antonio Avelange Bueno e Vivian Ferrari decidiram ir para Brasília por conta própria, de carro. A intenção do casal é mostrar a capital do país para os filhos, de 14 e nove anos, e levá-los para a posse de Lula.
— Tem duas motivações básicas: primeiro, é importante levar os nossos filhos lá. E segundo, compreendemos que é um ato histórico, com a retomada da democracia no país. As células fascistas começam a perder força. A grande maioria dos brasileiros sabe que esse modelo autoritário não serve para o nosso país — opina Avelange.
Avelange e Vivian moram em Porto Alegre. Como uma parte dos parentes da professora vive na região noroeste do Estado, a família iniciou a viagem na quarta-feira a partir de Horizontina, quase na divisa com Santa Catarina. Eles chegaram na quinta a Brasília, após 1,8 mil quilômetros rodados.
— Saímos de um período, em 2002, em que a democracia estava se consolidando, e agora estávamos num período de desestruturação da nossa carta constitucional. Nesta retomada, o respeito às instituições é fundamental para que a gente respire um pouco aliviado — analisa Avelange.
Depois da festa da posse, em 1º de janeiro, a família planeja estender o roteiro de férias para Rio de Janeiro e São Paulo.
Estrutura
Além dos militantes que vão a Brasília por conta própria e ficarão nas casas de amigos e familiares ou em hotéis, há uma série de estruturas preparadas para receber os caravaneiros que irão de ônibus. Desta quinta até a próxima segunda-feira (2), no dia seguinte à posse, dois pavilhões e cerca de 20 escolas públicas ficarão à disposição para o alojamento de militantes previamente cadastrados. Haverá controle na entrada.
Segundo Janaína Aguillera, que coordenou a excursão de 2002 citada no início da reportagem e hoje é voluntária na organização da posse, a maior parte dos militantes ficará abrigada no Estádio Mané Garrincha, no Parque da Cidade e na Granja do Torto. Foram instalados chuveiros e banheiros químicos, mas a alimentação fica por conta dos viajantes. Álcool e cigarro estão proibidos.
— Estamos esperando 300 mil pessoas só de ônibus. Muitos tiveram que sair com mais antecedência, para ter certeza de que não vão ser abordados pelo caminho, que não vão ter bloqueios na estrada. Tivemos uma campanha de arrecadação (de recursos) tanto para o Festival do Futuro quanto para estrutura, palcos. É tudo gratuito, as pessoas só vão arcar com a alimentação.
Para auxiliar os militantes, os voluntários produziram uma cartilha com detalhes sobre cerimônia, alojamentos, alimentação, saúde e segurança no dia da posse. A orientação é para que os apoiadores evitem se deslocar desacompanhados e, caso o façam, procurem sair sem identificação partidária. Também é recomendado que não respondam a provocações e se mantenham em contato com o coordenador de cada caravana.