O historiador René Gertz, 72 anos, é um dos principais pesquisadores das manifestações nazistas no Rio Grande do Sul. Autor, entre outros livros, de O Fascismo no Sul do Brasil (1987) e O Neonazismo no RS (2012), ele nasceu em Linha Machado, atual município de Novo Machado, na região de Santa Rosa, noroeste do Estado. Descendente de urcranianos de passaporte russo, falava alemão dentro de casa na infância. Na juventude, foi estudar no seminário para ser pastor luterano, em São Leopoldo, mas abreviou a carreira religiosa para tornar-se acadêmico, tendo lecionado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Hoje aposentado, Gertz tem travado embates com grupos antirracistas que tecem críticas aos episódios protagonizados por neonazistas no Estado. Para o pesquisador, descendentes de alemães que nada têm a ver com as manifestações estão sofrendo preconceito e, no futuro, poderão tornar-se alvo de agressões.
Sua infância foi humilde. Foram tempos difíceis?
O Brizola usava uma expressão: “Pobreza digna”. Tem a pobreza em que não se tem o que comer, não há onde morar e o que vestir. Não era o nosso caso. Tínhamos 12,5 hectares de terra, plantávamos praticamente tudo e comprávamos sal e açúcar. Era uma pobreza que não te humilhava. Fome nunca passamos.
O senhor é de origem ucraniana por parte de pai. E por parte de mãe?
Meus quatro avós chegaram ao Brasil como cidadãos russos, os paternos em 1908 e os maternos em 1913. A Ucrânia, na época, estava sob domínio russo. Os quatro são da região de Volínia, na Ucrânia.
Qual sua relação com a Alemanha?
Há judeus com o nome Gertz, mas meus antepassados sempre se identificaram pela origem alemã e como cachúbios. Dentro da Alemanha, tens os bávaros, os westfalianos, entre outros. Meus avós se identificavam como cachúbios. Eu tinha um colega da PUCRS que sempre dizia que essa era uma tribo insignificante do nordeste da Alemanha. O meu povo não é loiro. Eu tinha barba preta.
O senhor é luterano ainda hoje?
Sim. Sou filiado à comunidade São Lucas, que fica ao lado do Colégio Farroupilha, em Porto Alegre. Desde a infância, éramos luteranos rio-grandenses, igreja com a sede na Rua Senhor dos Passos, no Centro. É o luteranismo de tradição alemã. Há outras igrejas luteranas, que são da tradição americana.
Qual a relevância da religião luterana no Estado, junto à imigração alemã, como influência cultural?
Quando a imigração começou, vigorava no Brasil uma igreja oficial, a Católica. Os luteranos e os protestantes eram cidadãos de segunda categoria. Mas as autoridades, no projeto de imigração, pensaram na importância da religião para as pessoas. Foram trazidos pastores, desde os primeiros imigrantes. Houve uma tendência, dentre esses pastores, de trazer a ideia de que os luteranos estavam congregados em uma religião étnica, para evitar confronto com a Igreja Católica. Era como dizer: “Nós não vamos fazer missão no rebanho de vocês”. Nesse sentido, a igreja contribuiu, e se criaram as principais lideranças, que depois foram chamadas germanistas, da defesa de manter-se luterano, de manter-se alemão e de não casar de forma interétnica ou inter-religiosa. Os principais representantes dessa ideologia são os pastores. Wilhelm Rotermund, em São Leopoldo, criou uma potência editorial que existe até hoje, a Editora Rotermund. E, depois, o Pastor Hermann Dohms, que dá nome à escola na Avenida Dom Pedro II. Aí entra o senso comum de que essas pessoas eram apáticas ao Brasil. Rotermund e Dohms são intelectuais que pensaram o Brasil. Em segundo lugar, esse luteranismo evoluiu. Sobretudo depois da Segunda Guerra, deu uma guinada à esquerda e a Teologia da Libertação passou a estar muito presente. O luteranismo tem um leque muito grande de determinações. Hoje em dia, dizer que o luteranismo causou mal a esse Estado é uma temeridade.
O senhor decidiu não emendar o estudo no seminário com a faculdade de Teologia, migrando para a Unisinos para cursar História. não tinha vocação para ser pastor luterano?
Quando criança, eu era muito metido. E, no decorrer da adolescência, fiquei muito tímido. É um fardo que carrego até hoje. Para você ser pastor, tem de ser metido. A decisão era difícil. Chegamos no fim da turma com 10 alunos no 3º colegial. Desses, só dois não foram para a faculdade de Teologia. Minha decisão foi acertada.
No mestrado, o senhor estudou a Ação Integralista Brasileira. Há dúvida sobre se esse movimento, que buscava ser uma versão brasileira do nazifascismo europeu, tinha força por aqui na década de 1930. Tinha?
O Brasil tinha, no começo da década de 1930, cerca de 40 milhões de habitantes. Os integralistas diziam que tinham 1 milhão de filiados. Isso é muito contestado. Digamos que eles tenham tido 200 mil. Independentemente disso, não há dúvida de que o Integralismo foi um fenômeno marcante na história política brasileira. Sobretudo em Santa Catarina, teve presença significativa, claramente nas regiões de colonização italiana e alemã. Em novembro 1935, tivemos no Rio Grande do Sul a eleição para prefeito e vereadores. E, em Santa Catarina, em março de 1936. No Rio Grande do Sul, foram apenas quatro vereadores integralistas, três em Caxias do Sul e um em Novo Hamburgo. Em Santa Catarina foi bem diferente, com oito prefeitos e 72 vereadores integralistas eleitos.
É correto afirmar que, na década de 1930, o Partido Nazista tinha razoável quantidade de filiados no Estado? A agremiação era legalizada, havia desfiles e a bandeira nazista era hasteada. Qual era o tamanho da organização?
Quanto ao nazismo, a minha opinião diverge do senso comum. Vou começar pela bandeira. Naquele momento, após a chegada ao poder, a bandeira do Partido Nazista era a bandeira da Alemanha. Dizer que havia uma bandeira nazista, sendo que do lado tinha uma bandeira francesa ou americana, significa que não há diferença. Se o governo brasileiro recebia um embaixador alemão, mandava hastear a bandeira com a suástica porque essa era a bandeira da Alemanha naquele momento. Isso precisa ser dito com ênfase. No Brasil todo, tínhamos 100 mil cidadãos alemães. No Rio Grande do Sul, eram 14 mil. Isso na década de 1930. Desses 14 mil, 500 se filiaram ao Partido Nazista no Estado. Não considero isso muito.
Havia agremiações do trabalho com vínculo ao Partido Nazista, correto?
É citado por uma historiadora que atua em São Paulo, a Ana Maria Dietrich, e ela insiste muito que a Frente Alemã de Trabalho tinha no Brasil todo 6 mil associados. A Frente Alemã de Trabalho era como uma CUT (Central Única dos Trabalhadores) filiada ao Estado alemão. A filiação à Frente Alemã levava você a ter benefícios trabalhistas, inclusive a questão da aposentadoria, e não havia vínculo automático com o partido. As pessoas preferiam a questão social e previdenciária. Eram 6 mil que queriam garantir a sua vida sem se filiar ao partido. E destaco: tudo o que aconteceu até o final de 1937, com o Flores da Cunha de governador do Estado, aconteceu abertamente e de forma autorizada. O Flores da Cunha era muito amigo da colônia alemã. E os acontecimentos depois disso não foram atentados ao Brasil. Eu desafio a me citar um atentado ao Brasil ocorrido até 1945 no Rio Grande do Sul. Se Hitler tivesse ganho a guerra, tenho certeza de que a fila de brasileiros típicos teria sido no mínimo igual à dos alemães para se tornarem administradores nazistas. O que tinha de gente tipicamente brasileira favorável ao nazismo não era pouco. Isso precisa ser dito, para não cairmos no discurso preconceituoso. Temos descrições muito detalhadas sobre as reuniões dos núcleos nazistas que existiam aqui até 1937, quando era legal. O que eles faziam? Reuniam-se, hasteavam a bandeira e cantavam o hino nacional brasileiro para dizer que estavam agradecendo ao país hóspede. Houve coisas feitas por trás? Estou até hoje esperando dados de atentados contra o Brasil feitos por nazistas daqui.
Há comentários de que poderia haver espiões nos núcleos do Partido Nazista no Brasil. Qual sua avaliação?
O Brasil teve espiões na época também. Espiões estiveram em todo o lugar. Inclusive no Rio Grande do Sul foi preso um sujeito chamado Curt Meyer-Clason, que se apresentava como negociante de algodão. Ele foi julgado como espião. Aprendeu muito bem o português numa prisão daqui e, depois, quando foi solto e voltou para a Alemanha, virou tradutor literário. Ele negou a vida toda que foi espião, mas pode ter sido. Ele pode ter sido enviado para espionar um navio que saísse de Porto Alegre para os EUA levando couro para fazer botas para os soldados americanos. Esse tipo de coisa houve. Agora, é uma bestialogia dizer que um coloninho lá do interior de Estrela tenha causado um dano ao Brasil como espião. Outra bobagem é que essas espionagens teriam causado afundamentos de navios brasileiros (em 1942). Os navios brasileiros foram afundados primeiro lá no Caribe porque estavam levando mercadorias aos EUA. Em agosto de 1942, que foi o pontapé final para o Brasil entrar na guerra, foram afundados os navios de passageiros, com mulheres e crianças, pessoas que não eram militares. Getúlio Vargas não teve alternativa se não decretar a guerra. E essa última questão está estudada. O comandante Harro Schacht, do famoso submarino alemão U-507, resolveu por conta própria afundar esses navios (brasileiros), mesmo não tendo competência formal na Marinha alemã para estar no lugar onde estava. Ele desobedeceu ordens. Eu conto essa história, mas parece que as pessoas não dão bola. Acham que o coloninho era espião e forneceu informações.
Estou fazendo o possível para alertar as pessoas quanto a esse descontrole do antinazismo. Neste momento, o antinazismo é muito perigoso. Não é só o nazismo que nos ameaça.
A partir de 1938, houve uma guinada importante. Getúlio indicou Cordeiro de Farias para ser governador do Rio Grande do Sul como interventor. O que isso significou para os alemães e por que houve a virada na relação, que até então era fraterna?
Não vejo que o Cordeiro de Farias tenha sido colocado por causa dos alemães e da situação da colônia, mas porque Getúlio tinha de tirar o Flores da Cunha. Só que o Cordeiro de Farias estava imbuído daquela ideia de que o Rio Grande do Sul e a nacionalidade brasileira sofriam ameaça dos alemães. Naquele momento, no Estado Novo, ocorre um aprofundamento da identidade nacional brasileira. Quais são as características do Brasil? O Brasil tem os índios, os negros, e é o português, o lusitano, e o católico. Esse é o Brasil. Quem não se enquadra nisso não é Brasil. E os alemães luteranos estavam aqui. O que o Cordeiro de Farias decidiu fazer com essa gente? Nacionalizar. No primeiro momento, a nacionalização é educacional. Ainda não havia a proibição de falar alemão em público, mas as escolas (de língua alemã) foram fechadas. Getúlio demite Cordeiro de Farias em 1943, dando um basta nas perseguições dele. O famigerado Aurélio da Silva Py, o policial que fez fama por perseguir italianos e alemães a rodo no Estado, foi demitido também.
Esse período de Cordeiro de Farias como governador gaúcho, entre 1938 e 1943, foi o mais antigermânico?
Até 1940, não era proibido falar alemão na rua. Depois, se você dissesse sim ou não em alemão, poderia ser trucidado. Não há dúvida, o Cordeiro de Farias é o período mais sangrento, inclusive do ponto de vista de perda de vidas. Tivemos mortes. E começa uma descompressão só em 1943, quando assume o Ernesto Dornelles como governador. Foi uma clara decisão do Getúlio em dizer que o Cordeiro de Farias havia exagerado.
Quando o Brasil se opôs a Hitler, houve ataques contra alemães e descendentes no Estado?
Houve destruição maciça de tudo quanto era empresa alemã e italiana no Brasil. Isso pelo afundamento dos navios e as mortes. E, no início desse quebra-quebra, o Cordeiro de Farias foi para o meio do povo, em Porto Alegre. A Brigada Militar não fez nada para intervir. Depois, por determinação não se sabe de quem, veio o Exército e restabeleceu a ordem porque já estavam destruindo até patrimônio brasileiro. Nas cidades em que os alemães eram minoria, mas com presença importante em setores da economia, como Pelotas, Santa Maria e Porto Alegre, o quebra-quebra foi generalizado em tudo que lembrava alemão. Em Novo Hamburgo e São Leopoldo, os incidentes foram muito pequenos.
O senhor tem se dedicado a refutar analogias ou mesmo contextualizações históricas entre a colonização alemã e manifestações atuais de neonazismo. Considera que os descendentes de alemães são vítimas de preconceito?
Entrei nessa questão por pressão, quando começaram os atos neonazistas no Estado, sobretudo a partir de 2003, com a banda Zurzir, e quando jovens foram atacados na Cidade Baixa, em 2005, supostamente pelo fato de terem sido identificados como judeus. Me perguntavam o que eu pensava. E comecei a juntar material e a me preocupar. As pessoas questionavam que eu falava do nazismo dos anos 1930, mas e o neonazismo na sua versão atual? Pesquisei e verifiquei que, entre 2000 e 2009, não ocorreu nenhum ato neonazista nas regiões de colônia interiorana. Os episódios eram na Grande Porto Alegre. Consegui identificar 32 nomes e sobrenomes (envolvidos em atos neonazistas). Desses 32, tenho um de sobrenome único que é alemão e três em que um pedaço do sobrenome é alemão. Já eram nomes com casamentos interétnicos, nada a ver com o coloninho do germanismo. Em 2009, apareceu o primeiro episódio envolvendo uma região de colônia, em Teutônia. Um sujeito paranaense, com metade do sobrenome em alemão, veio morar em Teutônia e foi preso sob acusação de cometer um homicídio (tanto o preso quanto as vítimas eram do grupo Neuland, ou “Terra Nova”, envolvidos em uma disputa de poder no núcleo neonazista).
Já houve assassinatos e outros ataques graves cometidos por neonazistas. mas mais importante do que discutir se as pessoas que se envolvem nisso têm ou não sobrenome alemão não seria debater o motivo dessa ideologia de morte seguir viva?
Sim. Combata-se com todos os meios possíveis nazistas e neonazistas. Mas, pelo amor de Deus, ir a Teutônia e querer desnazificar 350 mil seres humanos do Vale do Taquari porque um membro do Ministério Público Federal (MPF) acha que eles são todos neonazistas? Isso é um preconceito que merece uma condenação tão veemente quanto os atos nazistas. Me explique o que o povo de Teutônia tem a ver se um sujeito do Paraná bota na cabeça que é alemão? E foi massacrado o povo naquele episódio (de 2009), em documento oficial do MPF, onde foi escrito que os concidadãos de Teutônia estavam fragilizados pelo neonazismo. Como podemos tolerar isso?
O senhor diz, em artigo sobre o neonazismo: “Muitos daqueles que se dizem antirracistas são muito mais racistas do que aqueles que eles dizem estar combatendo”. O enfrentamento ao neonazismo está enviesado?
Temos o exemplo de agora. Um professor de música da UFRGS viu referências à suástica em um piso no Parque da Redenção. Vocês (da ZH) publicaram reportagem e todos os entrevistados negaram (que haveria conotação nazista no piso). E, mesmo assim, vandalizaram. Isso é gente que enche a boca para falar do patrimônio público. A Redenção é tombada. E são pessoas que se dizem antirracistas. Não posso me calar.
No livro O Neonazismo no RS, o senhor afirma: “A preocupação cidadã em fazer alguma coisa para evitar que o Rio Grande do Sul venha a transformar-se numa nova Bósnia justifica esse deslize, esse abandono da neutralidade acadêmica”. Hoje, nove anos após a publicação, considerando que a guerra dos bálcãs foi um dos mais horripilantes e recentes banhos de sangue da humanidade, o senhor entende que cometeu um exagero ao traçar esse paralelo?
Posso ter exagerado nessa parte da frase. Sabemos do caráter pacífico do brasileiro. Por outro lado, desde que escrevi isso, quando ocorrem problemas reais relacionados ao nazismo, aponta-se que os culpados estão ali (alemães). Isso continua de pé, não arredo nenhum centímetro. Esse caso da estudante da UFPel (que festejou aniversário com um bolo que continha imagem de Hitler), de sobrenome Gutknecht, alemão, tem uma explicação diferente do que foi propalado. E você olha os comentários das reportagens dos sites que foram feitos por leitores em função do sobrenome da moça. Se tivermos um aprofundamento da crise econômica, sim, uma nova Bósnia pode surgir nesse Estado. Estou fazendo o possível para alertar as pessoas quanto a esse descontrole do antinazismo. Neste momento, o antinazismo é muito perigoso. Essa gente também precisa ser combatida. A harmonia requer que todos os extremismos sejam combatidos. Não é só o nazismo que nos ameaça.
O senhor acha que, sob a justificativa legítima do combate ao nazismo, o antinazismo pode tornar-se um antigermanismo?
Depois do vandalismo no Parque na Redenção, imagina um sujeito desavisado colocar camisa vermelha, calça preta e meias brancas. São as cores da suástica. As pessoas que vandalizaram porque viram nazismo no piso da Redenção vão ver obviamente nazismo num sujeito desses. Tudo virou nazismo, inclusive nos casos evidentes em que não é. Isso é perigoso.