Louis Frankenberg tinha 11 anos quando, em 1947, tomou ao lado da irmã, Eva, 14, um voo da companhia holandesa KLM saindo de Amsterdã para o Rio de Janeiro. O tio aguardava, no aeroporto, as crianças que não falavam uma palavra de português. No dia seguinte, embarcaram em um avião da Varig para Porto Alegre. A mala de Louis era desumanamente pesada: trazia a experiência de uma criança judia que sobreviveu ao Holocausto.
Filho do holandês Hans Lion Frankenberg e da alemã Gertrude Klara Goldschmidt, Louis, conhecido pelo apelido Lode, nasceu em outubro de 1936 em Alkmaar, a 40 quilômetros de Amsterdã. A família era dona de uma importante livraria e papelaria da cidade. Em 1940, quando o menino tinha quatro anos, os nazistas invadiram a Holanda.
— Eu sou um sobrevivente do Holocausto — afirmou por Skype a GZH, algo raro, uma vez que a maioria das crianças capturadas morria nas mãos dos nazistas.
A Holanda virou terra arrasada após a “Solução Final”, método de extermínio implementado pelo Terceiro Reich: dos 140 mil judeus holandeses que havia antes da ocupação, 38 mil sobreviveram. O terror se instaurou de forma paulatina: com relativa tranquilidade no início, judeus chegaram a acreditar em uma vida em paz. Foi em 1942 que a situação se tornou periclitante.
As restrições de liberdade se tornaram mais severas até que a família Frankenberg precisou entregar a casa e a livraria aos nazistas. Foram expulsos de Alkmaar e obrigados a se mudar para a capital holandesa, último passo antes dos campos de concentração. Frente à perspectiva da morte em captura conjunta, Hans e Gertrude viram só uma saída: separarem-se dos filhos.
Em 1942, Louis e Eva se despediram dos pais e foram enviados para viver como crianças católicas em um internato na cidade de Hilversum, a 25 quilômetros de Amsterdã. Hans e Gertrude ficaram escondidos no porão da casa de uma uma viúva que lucrava abrigando judeus.
Para Louis, que tinha cinco anos, não há lembranças da cisão familiar. Foi, contudo, a última reunião: um ano depois, os pais foram traídos, capturados pela polícia e enviados para Westerbork, o grande campo de concentração da Holanda. Dali, partiram para o campo de extermínio de Sobibor, na Polônia, onde morreram na câmara de gás. Quase todos os outros familiares também foram assassinados.
O menino só ficou a par do trágico destino dos pais mais tarde. Dos cinco aos seis anos, viveu com a irmã no internato católico, obrigado a esconder a identidade judaica. Louis guarda até hoje cada palavra das instruções repassadas pela diretora, logo que chegou:
— Lode, se a polícia tocar a campainha, você tem que se esconder.
Em janeiro, auge do inverno, policiais holandeses nazistas bateram à porta do internato trazendo, na mão, uma lista com os nomes das quatro crianças judias escondidas: Louis, a irmã Eva e outras duas meninas. Eva estava na aula, em uma escola pública. Louis foi alertado para se esconder.
O menino correu pela casa em direção ao esconderijo: uma escada que ligava o segundo ao terceiro andar. Entrou em uma espécie de alçapão, posicionado debaixo do telhado, no qual apenas uma criança pequena caberia. Lembrou-se de outra instrução da professora e estendeu, com as mãozinhas, um pano preto sobre o corpo. Ouviu, com o coração na garganta, um policial inspecionar o primeiro andar da casa e subir na escada, próximo ao esconderijo. O homem abriu a porta do alçapão, ligou a lanterna e iluminou o recinto. Viu apenas escuridão. Foi embora. Seria a salvação de Louis se outra criança não tivesse gritado:
— Ele está no alçapão, olha no alçapão!
A diretora do internato, sob ameaça policial, chamou-o para a emboscada:
— Lode, pode descer. Confiando na cuidadora, o menino saiu do esconderijo e caiu direto nas mãos dos nazistas. — Ali foi o começo da minha odisseia — diz Louis.
O garoto ainda foi corajoso o bastante para salvar uma preciosa vida. Enquanto aguardava ser conduzido para a delegacia, Louis avistou, da janela do quarto no segundo andar, a irmã Eva pedalando distraidamente de bicicleta no parque defronte à casa, voltando da escola. Sem que os policiais vissem, o menino parou rente ao vidro e, em silêncio, sacudiu as mãozinhas para a frente, para que ela fosse embora e não voltasse. A distância, Eva viu o irmão, entendeu o recado, deu meia volta e fugiu. Acolhida pela resistência holandesa, viveu em uma granja como filha mais velha de um casal de fazendeiros católicos. Jamais foi capturada pelos nazistas.
O irmãozinho não teve a mesma sorte: Louis foi levado para a delegacia e, dias depois, partiu sozinho para o campo de concentração de Westerbork, onde viveu Anne Frank antes de ela ir para Auschwitz. Era 1944, um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial.
A vida em Westerbork
Westerbork era um campo de concentração criado em 1939 na cidade homônima holandesa para ser o ponto de passagem de judeus até os campos de extermínio. De lá, 103 mil pessoas foram enviadas para Auschwitz e Sobibor. Outros milhares foram para Theresienstadt, na República Tcheca, e Bergen-Belsen, na Alemanha. No local, havia um “orfanato” – onde Louis, aos seis anos, ficou por sete meses. São poucas as lembranças dele no campo: recebia uma vez por dia um leite muito aguado e, por ser muito pequeno, não podia sair do prédio. Sentia saudades da família.
Assim como em outros campos, a administração de Westerbork era feita por judeus, sob o controle do Terceiro Reich. Essa lógica preservou a vida de Louis: fazia parte da “elite” local um distante primo mais velho chamado Hans Eckmann, que mantinha trânsito junto aos alemães. A relação permitia que ele saísse do campo de concentração – mas precisava voltar, uma vez que a esposa e as duas filhas também estavam presas.
Em uma saída, Hans obteve um certificado falso de batismo para Louis, emitido pela Igreja Reformista da Holanda, de fé protestante.
— Esse documento salvou minha vida. Meu primo levou ao comandante do campo, que escreveu de próprio punho: “Lodewijk Frankenberg não será enviado para o Leste”. O Leste eram os campos de extermínio de Auschwitz e Sobibor. Esse documento era importantíssimo, consegui anos mais tarde e tenho até hoje — conta.
Semanalmente, trens partiam de Westerbork para campos de extermínio, mas Louis não embarcava em nenhum, graças à certidão de batismo falsa. Escapou das câmaras de gás, um destino certo para crianças de sua idade, incapazes de colaborar com o trabalho forçado. Mas a boa sorte uma hora acabou.
O comandante de Westerbork recebeu um telegrama de Berlim para começar a evacuar o campo. Era setembro quando um trem partiu com 2.097 judeus para o gueto de Theresienstadt, na República Tcheca. Louis Frankenberg estava nele. Antes da partida, o primo Hans disse, em um gesto de conforto, que Lode seria cuidado no próximo destino. Era mentira: não havia nenhum conhecido para cuidar do menino. Prisioneiros não sabiam nada sobre o futuro.
A vida em Theresienstadt
Em 4 de setembro de 1944, aos sete anos, Louis chegou a Theresienstadt, localizado na cidade de Terezín, na República Tcheca. Por ali passaram 140 mil pessoas – 33 mil morreram de fome ou doenças. O menino morou na barraca 35.
Theresienstadt concentrava prisioneiros para despachá-los, em trens, para campos de extermínio. Havia ainda outro propósito: alimentar a propaganda nazista. O campo trazia um verniz de normalidade e era vendido como “cidade-modelo”, uma mentira forjada para afirmar que judeus viviam bem sob os cuidados do Terceiro Reich.
No local, que abrigava a elite intelectual e artística judaica, havia escola, orquestra, cabeleireiro e até restaurante. Tudo não passava de engodo: milhares de presos morreram de fome, de doenças ou após serem enviados para campos de extermínio. Estima-se que, das 15 mil crianças enviadas a Theresienstadt, 90% morreram. A mortalidade era tão alta que os nazistas instalaram um crematório com capacidade de incinerar 200 corpos por dia. Louis foi a exceção à estatística: sobreviveu por meio ano graças a um gesto de benevolência de pessoas distantes.
— Alguém perguntou para um casal, totalmente desconhecido meu, se queriam cuidar daquela criança que não tinha mais ninguém. Eram Mauritz e Renée, tchecos que emigraram para a Holanda antes da guerra. Eles disseram que sim e passaram a cuidar de mim, me colocavam para dormir no chão entre os dois. Viraram meu tio e minha tia até as mortes deles — afirma Louis.
Por um lado, Louis podia brincar nas ruas do campo e até fez um amigo holandês – Bob, um pouco mais velho, que assumia uma figura protetora. De outro, o garoto vivenciava fome e privações. Documentos preservados até hoje mostram o magro cardápio dado aos detentos: às segundas-feiras, comia-se sopa de milho no almoço e um pedaço de pão no jantar. Aprendeu alemão para se comunicar.
Outra desumana imposição dos nazistas exigia que Louis e outras crianças despejassem um pó, armazenado dentro de caixinhas, no rio que passava próximo ao campo. Eram cinzas de corpos incinerados no crematório de Theresienstadt.
— Era bem pior do que Westerbork. Em Westerbork, se passava fome, mas as pessoas podiam receber pacotes de familiares e de amigos. Em Theresienstadt, não existia nada disso. Era ruim, as pessoas eram magras, tinha-se muita fome. O tempo todo saíam trens com judeus rumo aos campos de extermínio. As pessoas não tinham nenhuma segurança nem perspectiva de futuro… Assim era Theresienstadt — diz Louis.
O calvário de Louis sob a égide nazista teve fim após uma distante negociação política. Já era fim da guerra, e os alemães, antevendo a derrota, passaram a negociar um acordo para libertar judeus – o objetivo era reduzir penalidades uma vez que o conflito acabasse.
O acordo, costurado pelo presidente da Suíça Jean-Marie Musy e o chefe da SS, as forças militares nazistas, Adolf Himmler, permitiu que um trem saísse de Theresienstadt com 1.210 judeus em troca de prisioneiros de guerra alemães. Foi um dos únicos trens que libertaram pessoas durante a Segunda Guerra – e Louis embarcou nele. Era início de 1945, meses antes do fim do Holocausto.
Aos nove anos, Louis deixou os campos de concentração para trás e foi para a Suíça francesa, na cidade de Caux. A liberdade, contudo, não foi fácil: viveu em internatos e passou por diversas famílias, que o rejeitavam por considerá-lo rebelde.
Em abril de 1946, Louis voltou à Holanda e reencontrou a irmã. Viveu um tempo com uma familiar e meio ano em uma instituição psiquiátrica. O cenário mudou completamente quando uma ONG dedicada a ajudar órfãos do Holocausto localizou a avó materna e a tia dos pequenos Frankenberg.
Mas elas moravam longe: do outro lado do Atlântico, em uma cidade do sul do Brasil chamada Porto Alegre.
A vida o Moinhos de Vento
Era junho de 1947 quando Louis e Eva desembarcaram no Rio de Janeiro e rumaram à capital gaúcha para viver com os tios na rua Santo Inácio, no bairro Moinhos de Vento. Quando passa a descrever ao repórter o início de sua vida no Brasil, Lode assume uma expressão mais leve. Mesmo os percalços são descritos com bom humor. Na chegada à Porto Alegre, por exemplo, ao descer na rua para brincar com outras crianças, ele logo foi interpelado:
— Para qual time tu torce, Grêmio ou Internacional?
A palavra “Grêmio” era estranha e não despertou qualquer sentido. Mas “Internacional”, essa palavra ele conhecia em holandês e alemão. A resposta foi curta e entusiasmada:
— Internacional!
Louis se tornou colorado “até debaixo d’água”. Brincadeiras assim marcaram sua infância, junto às amizades no Moinhos de Vento, a adaptação à nova cultura, as aulas no Colégio Batista e no Julio de Castilhos, a mudança para uma rua no Centro Histórico e a saudade da família. Foi, em suas palavras, “uma vida muito gostosa”.
Em Porto Alegre, Louis desenvolveu um hábito específico para se conectar à terra natal: consultar diariamente o jornal para saber quais navios haviam atracado na cidade. Quando a embarcação tinha nome holandês, ele caminhava a pé até o Cais do Porto.
— Eu pedia licença para o pessoal da alfândega e entrava. Não era algo autorizado, mas eu era um menino simpático. Eu subia a escadinha e entrava a bordo do navio para falar holandês e comer queijo e chocolate. Eu adorava. Era minha forma de matar um pouco a saudade da Holanda — conta.
Em dezembro de 1960, Louis se casou com Helena Beatriz, que conheceu no Colégio Batista. A cerimônia ocorreu na sinagoga da Sociedade Israelita, na Rua Miguel Tostes, bairro Rio Branco. Por coincidência, a via recebia outra nomenclatura:
— Na época, se chamava Rua Esperança — recorda Louis.
Viveram em Porto Alegre até 1966. Já formado em Ciências Contábeis na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Louis conseguiu trabalho em uma empresa internacional e se mudou para Montevidéu, Buenos Aires e, mais tarde, São Paulo, onde vive há décadas com a esposa.
Me considero gaúcho e mais brasileiro do que holandês. O Brasil me recebeu muito bem. Na Holanda, já me acham meio brasileiro. Acho que estou no limiar entre os dois.
Louis se tornou pioneiro da área de educação financeira do Brasil. Fundou a Planejar, a maior associação de planejadores financeiros do país, publicou livros sobre o tema e foi colunista da Revista Exame por seis anos. É pai de três filhos e avô de sete netos, hoje espalhados pelo mundo.
— Me considero gaúcho e mais brasileiro do que holandês. O Brasil me recebeu muito bem, nunca tive problemas por ser holandês ou judeu. Aqui as pessoas diziam: “Louis, a gente gosta de você porque você é autêntico, fala a verdade”, algo muito holandês. E, na Holanda, já me acham meio brasileiro. Acho que estou no limiar entre os dois — reflete.
Assim como outras milhares de crianças órfãs que sobreviveram ao Holocausto por terem se separado da família e vivido escondidas em internatos ou conventos, Louis sabia quase nada sobre os Frankenberg. O desejo de retomar as raízes e buscar uma identidade o levou a uma empreitada: em 1988, começou a investigar seu passado.
Visitou museus e arquivos públicos em cidades do Brasil, dos Estados Unidos, da Alemanha e da Holanda para refazer a trajetória da família, em uma busca descrita como “caça ao tesouro”.
— Quando criança, eu tinha uma ansiedade muito grande de saber o que aconteceu com meus pais. Tive que recuperar tudo indo atrás de documentos para ter minha história de volta. Claro que a parte psíquica não se recupera, mas a parte documental, sim.
Encontrou telegramas de seus pais pedindo ajuda para sair da Europa, refez a história dos Frankenberg e descobriu o infortúnio da família durante o nazismo. Com o genro, o jornalista Ricardo Garcia, Louis publicará a autobiografia Cinco Vezes Vivo, para a qual busca um editora.
Quando criança, eu tinha uma ansiedade muito grande de saber o que aconteceu com meus pais. Tive que recuperar tudo indo atrás de documentos para ter minha história de volta. Claro que a parte psíquica não se recupera, mas a parte documental, sim.
Louis mora hoje no bairro Jardim Paulistano. Eva, a irmã salva por ele enquanto voltava de bicicleta da escola, retornou para a Europa pouco após atingir a maioridade. Ela vive na Suíça. Os “tios” que salvaram Louis no campo de Theresienstadt também sobreviveram, e Louis os visitou até a morte na Holanda e em Israel.
Durante o Holocausto, os nazistas mataram 6 milhões de judeus, incluindo quase toda a família Frankenberg. Louis e a irmã fazem parte das poucas crianças órfãs que sobreviveram, graças à iniciativa de anônimos que ousaram tomar uma atitude diante do ódio nazista. Mas Louis não se encerra na identidade de “sobrevivente”: prefere destacar as vitórias pessoais que foram conquistadas no Brasil.
— Eu tinha muitas saudades dos meus pais e da minha irmã. Estava sozinho, e isso ficou até a vida adulta, até hoje. É uma lembrança muito complicada e difícil. Tanto é que, quando leio coisas sobre o assunto, me emociono. É muito ruim – suspira, fazendo quatro segundos de silêncio. – Mas... tudo passou. Eu me tornei muito feliz mais tarde. Sou uma pessoa imensamente feliz. Tenho três filhos e sete netos. A vida seguiu.
Amar e ser amado pela esposa ao longo das últimas seis décadas, criar três filhos e sete netos, tornar-se um profissional de sucesso na pátria que o abrigou e chegar aos 84 anos com lucidez e sorriso no rosto: eis a vingança de Louis Frankenberg contra os nazistas.
O valor do testemunho
- Registros do Itamaraty apontam que, assim como Louis, entre 16 mil e 20 mil judeus se refugiaram do nazismo no Brasil, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora de História da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores especialistas do país em Holocausto. O número pode ser maior, visto que, na alfândega, muitos se declararam católicos ou entraram com visto de turista.
- A história de Lode foi registrada pela pesquisadora, que coordena o projeto Arqshoah – Vozes do Holocausto, responsável por entrevistar e registrar 420 sobreviventes que vieram ao Brasil. O relato descrito nesta reportagem está sendo reconstituído por Maria Luiza. Ela sublinha que esse tipo de depoimento é essencial para não esquecer os horrores do Holocausto.
- "Cada testemunho preenche um espaço silenciado e nos instiga a refletir sobre a intensidade do Holocausto e do terror. Reforça, também, a proposta de que cada testemunho é um ato de protesto contra o antissemitismo e um alerta do papel do Estado na preservação de todos os cidadãos, sendo judeus ou não, algo importante agora, em uma época de pandemia. São crianças que sobreviveram, vieram ao Brasil e, hoje, suas trajetórias fazem parte da história do nosso país. Aqui, elas deixarão um legado", analisa a professora da USP.