Formada em Odontologia, Bruna Kadletz, 38 anos, cresceu em Florianópolis (SC). Em 2008, ao se apaixonar por um maranhense, decidiu morar em Imperatriz (MA). No meio do nada, como diz. Acreditava que viveria o grande amor por um homem, mas foi um despertar do amor pela humanidade. É que a vida considerada perfeita por muitos não foi suficiente para alimentar “o buraco que existia dentro” dela. Em 2009, Bruna terminou o relacionamento, pôs a profissão em modo espera e foi viajar. E a vida teve uma reviravolta. Percorreu mais de 30 países, conheceu a realidade de refugiados e, ao voltar ao Brasil, em 2015, lançou o livro Minha Terra Mora em Mim (Ed. Insular) e fundou a Círculos de Hospitalidade, organização da sociedade civil (OSC) que desenvolve projetos sociais para imigrantes e pessoas refugiadas. Ela concedeu a seguinte entrevista a GZH.
Como foi a mudança da da odontologia para o trabalho com causas humanitárias?
Quando cheguei à Imperatriz, no Maranhão, vi uma realidade muito diferente da de Florianópolis. Comecei a trabalhar na minha área. Aquela é uma das regiões mais pobres do Brasil, com um dos maiores índices de desigualdade social. No meu relacionamento, eu vivia um extremo, o da riqueza; e, no trabalho, vivia o outro, atendendo pessoas em situação abaixo do índice da pobreza. Eu atendia num consultório particular, dava aula na faculdade local e trabalhava numa escola, com crianças. Em um projeto do Sesi, integrei uma equipe que viajava ao interior para fazer o levantamento de saúde dos migrantes sazonais, cuidando da saúde bucal deles. Lembro de uma situação específica que me marcou muito. Estávamos em uma van quando vimos um grupo de crianças peladinhas, com aquela barriga bem distendida e só cobertas com uma camada de pó no corpo. Elas corriam atrás da van. Na minha ingenuidade, perguntei aos colegas por que elas corriam. Quem era da região já havia normalizado aquilo. Elas estavam esperando que a gente jogasse comida pela janela para catarem do chão e comer. Aquilo foi um choque muito grande para mim. Não só a situação, mas mais ainda como se normalizou aquela situação. O despertar, para mim, foi um “não vou normalizar isso”. A ideia de falar sobre higiene bucal perdeu o sentido, porque as pessoas não tinham o que comer. Como eu falaria sobre o uso do fio dental após as três refeições naquele contexto? Tive uma crise de propósito: “qual era o meu lugar no mundo?”.
Antes disso, os temas sociais tinham que importância para você?
Quando eu era criança, minha mãe, que hoje é médica aposentada, se voluntariava em um centro espírita. Ao invés de me levar ao shopping, ela me levava para esse local nos fins de semana. Então, meu voluntariado começou aos oito, nove anos, varrendo chão e servindo comida. Na universidade, fiz parte de projetos sociais atendendo crianças. Não via a odontologia como uma forma de ganhar dinheiro, fazia atendimentos onde a população precisasse. Era como se eu saísse da minha bolha para fazer os atendimentos.
Como surgiu a chance de trabalhar na ajuda internacional?
Isso veio das reflexões sobre o que eu faria com a minha vida. Essa lógica da sociedade de que o sucesso é ter uma carreira, uma família e patrimônio material não faz sentido pra mim. Então, eu queria entender como contribuir, o que eu tinha para oferecer. Foi assim que me aproximei da questão humanitária. Na Austrália, morei com uma refugiada do Vietnã, que havia saído do país de origem aos sete anos com a mãe. Elas estavam em um barco quando foram interceptadas (pelo governo australiano). Ficaram dois anos em um campo de detenção de uma ilha do Pacífico até terem permissão para viver na Austrália. Essa história me tocou muito. E eu tinha muito interesse por questões ecológicas, entender os impactos da mudança climática em fluxos migratórios, como essa mudança também gera crises humanitárias.
Você queria atuar como voluntária na Jordânia, durante a guerra na Síria. O que ocorreu?
Depois de passar pelo Marrocos, estava no Brasil em 2012. Nessa época, a guerra na Síria já estava ocorrendo. Eu olhava os sites vinculados à ONU, pesquisava o Médicos sem Fronteiras e tinha o sonho de trabalhar com ribeirinhos na Amazônia. Achava que seria pela odontologia, mas não foi. Acabei me voluntariando para atuar num campo de refugiados no deserto da Jordânia, mas não fui selecionada. Só então entendi que não bastavam boa vontade e estudo. Precisava estar preparada emocionalmente. O que vivi no Maranhão tinha mexido comigo. Entendi que precisava me fortalecer. Passei, então, por um período de estudos, depois fiz um retiro na Califórnia (EUA), passando quase seis meses em silêncio. A espiritualidade me fortalece, me permite mergulhar em mim para poder emergir e agir com aquilo que acredito ter impacto real, e não apenas agir com raiva e revolta, o que é comum no ativismo.
Habitamos uma casa em comum, pertencemos a uma única humanidade. devemos entender nossas diferenças como uma fortaleza. Para isso, precisamos sentar, conversar, escutar o outro.
Você viveu muitas experiências de repúdio odioso a refugiados. Como observa a intolerância crescente no mundo atual?
É muito preocupante tudo o que está ocorrendo. O que meu trabalho me ensina é buscar formas de como ser e estar no mundo. O confronto não está entre essas formas. Destruir o argumento do outro, fechando-se para o diálogo, não nos permite colocarmos no local em que esse outro está, conversar com ele, ouvir suas dores. Posso não concordar com a visão que ele tem, mas não posso me fechar para ele. A ausência de diálogo dificulta mais ainda que façamos a necessária transição para as sociedades multiculturais, nas quais todos possam conviver pacificamente. Nem sei se nosso nível de mentalidade suporta essa convivência, porque vivemos em meio à competição e à hierarquização da vida humana. Estamos vendo agora várias formas de colapso dessa forma de vida. A transição virá com sofrimento.
A pandemia seria uma forma de colapso?
É tão complexo. Para algumas pessoas essa crise sanitária aproxima, para outras, distancia. A gente vive tantas realidades. Tudo o que falo é do meu local de experiência. Não há uma história única. Há uma construção para cada um chegar onde está hoje. Isso é importante no trabalho com refugiados e migrantes: entender a sua trajetória. Muitas vezes, numa perspectiva mais colonizadora, o refugiado pode ser visto como uma pessoa que precisa ser domesticada, porque a sua cultura não seria boa o suficiente. Mas são os costumes que são diferentes. Especialmente quando são muito diferentes, casos, por exemplo, das pessoas que vêm do continente africano e do Oriente Médio. É preciso repensar a mentalidade colonial no trato com essas pessoas.
Dos lugares pelos quais que você passou, qual marcou mais? por quê?
Sinto saudade da Turquia, um lugar que tem uma magia. É um país que me fascina por ser tão diverso, com natureza deslumbrante, culinária rica e que une o antigo com o moderno. É estranho porque como tenho um desprendimento, é difícil sentir saudade de um lugar. Mas Istambul me traz muita saudade.
Você costuma voltar aos lugares onde já esteve? Sim. Ao Líbano eu costumo voltar todos os anos. É um país sofrido e complexo, vizinho da Síria. Tem muitos refugiados palestinos, é um país com uma das maiores proporções de refugiados do mundo (mais de 25% da população) e fica num local que me fascina, o Oriente Médio, tanto pela cultura quanto pela hospitalidade das pessoas. Há algo fascinante em certos países do Oriente. Tive a oportunidade de estar na China, na Indonésia, na Índia, no Nepal, na Jordânia, na Palestina. Esses países têm algo que o Ocidente perdeu, uma questão de comunidade que é muito forte. No Ocidente, somos muito individualizados.
O que te fez voltar para o Brasil?
Continuo indo e vindo. O Brasil é minha casa. O português é minha língua. Quando chego no aeroporto e ouço o português brasileiro, sinto a sensação de casa. Mas também tenho projetos fora. Voltei na pandemia, mas não significa que vou ficar.
Depois de visitar tantos locais diferentes, como você percebe o Brasil?
Falar do Brasil é uma dor grande, ainda mais no momento em que estamos. É um país maravilhoso. Mas toda a nossa história... Quando falo de história estou falando dos povos originários, de tudo que tenta ser deletado sobre eles. Temos uma responsabilidade muito grande com relação aos povos originários, a quem pertence esta nossa terra. Tudo o que a gente construiu neste país foi à base de sangue e de escravidão. Não tem como falar num Brasil justo, correto, digno, sem reconhecermos o que fizemos com os povos ancestrais e sua sabedoria. E aqui estou falando como uma mulher branca, que tem determinado privilégio e que o herdou por conta de uma construção social que determina qual vida tem mais ou menos valor. Não tenho como falar do Brasil sem reconhecer que neste país muitas pessoas sofrem simplesmente por causa de sua etnia, de cor de pele, de sua história. Este país tem uma riqueza cultural e natural gigantes, um potencial imenso. E não estou falando de uma riqueza que deva ser explorada por um sistema capitalista para fazer mais feridas no corpo da Terra. Mas é o que fazemos. Então, é uma dor falar do Brasil. Aqui a destruição vem junto com a corrupção e a ignorância, em um projeto de país que se perpetua.
Como surgiu a organização Círculos de Hospitalidade?
Em Edimburgo (Escócia), eu já fazia parte de uma ONG que atuava com a questão síria. Lá, apresentei um documentário sobre o impacto da guerra na vida de crianças e jovens. Quando voltei para Florianópolis, em 2015, exibi o documentário até em festa de família. Como eu não conhecia mais ninguém, uma prima passou a me apresentar para algumas pessoas. Também “me divulgava” para palestras sobre a minha experiência de vida. Estive inclusive na UFRGS, em Porto Alegre. No início, eu pagava para ir. Depois, começaram a pagar as minhas viagens. Em paralelo, comecei a conhecer as pessoas sírias que buscaram refúgio no Brasil por causa da guerra. Em parceria, conseguimos um espaço no Instituto Arco-Íris de Direitos Humanos. Nos dois primeiros anos, não havia dinheiro envolvido, era tudo voluntário. Começamos com aulas de português, recreação e reforço escolar. Comprei um quadrinho verde, giz e livros e ia na casa das mulheres para ensinar português. Fui me articulando, participando de reuniões com universidades e empresários, falava da minha ideia e pedia apoio e voluntários. Sempre foi um processo de escuta: “O que vocês precisam? Como vocês querem?”. Até que elas pediram aula de artesanato, e conseguimos professora. Um apoio muito importante veio do consulado do Canadá em Florianópolis.
Como foi esse apoio do governo canadense?
O governo do Canadá foi o primeiro a nos apoiar. Nosso primeiro projeto foi de empreendedorismo com mulheres árabes, em parceria com o núcleo de empreendedorismo do Instituto Federal de Santa Catarina. No final do projeto, fizemos uma feira envolvendo mulheres da Síria, da Líbia, da Jordânia, do Líbano e da Palestina. Depois, começamos a concorrer para editais e a fazer feiras multiculturais envolvendo empresas e órgãos locais. Em paralelo, continuei viajando para palestras e produções de documentários.
Você considera 2020 um ano de grande mudança para o projeto. Por quê? Além da pandemia, firmamos contrato com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) para implementar por dois anos em Santa Catarina o projeto Oportunidades, financiado no Brasil pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos EUA. Visa à integração econômica de venezuelanos e de migrantes de países vizinhos ao Brasil e está em seis Estados. Fomos a primeira organização no Brasil a assinar.
O que mudou a partir desse contrato?
A Círculos cresceu muito. Antes, tínhamos uma média mensal de 10 a 15 atendimentos para documentação e acesso a direitos. Passamos para 300 pessoas. Uma loucura! Eu tinha sempre mais de 200 mensagens acumuladas no celular. Havia cinco pessoas e voluntários, mas precisamos nos profissionalizar, nos informatizar. Com a pandemia, houve um impacto maior na vida dessas pessoas. Logo no início, 80 venezuelanos foram demitidos e começaram os pedidos de cestas básicas. Recebemos 50 cestas de outro projeto, e eu tinha uma lista com 85 famílias. Lembro que chorava por ter de escolher quem receberia comida no dia seguinte. Naquela semana, escrevi a proposta do projeto Humanidade em Ação, uma resposta humanitária de caráter emergencial e temporário, para um financiador norte-americano. A questão do migrante é muito intensa, se eles perderem o trabalho hoje, amanhã não têm comida e dinheiro para o aluguel porque eles não têm reserva. Tudo o que sobra eles mandam para casa, para quem ficou no país original deles. A agonia é porque têm outras bocas para alimentar na Venezuela, no Haiti. Desde abril de 2020, doamos R$ 375 mil. Foram mais de 180 famílias auxiliadas. Nesse período de pandemia, doamos mais de 40 toneladas de alimentos para mais de 2 mil pessoas. Nos últimos anos, tivemos mais de 4 mil beneficiários de mais de 30 nacionalidades. Não focamos em receber doações de pessoas físicas porque, para isso, precisaríamos expor as famílias, mostrá-las recebendo as doações. Preferimos concorrer a editais. Dá trabalho, mas não precisamos expor as pessoas. A nossa meta é protegê-las.
Quais os próximos passos seus e da organização?
Pretendemos fortalecer o trabalho para humanizar a nossa resposta humanitária, reconhecendo a dignidade dessas pessoas e criar uma sociedade mais hospitaleira e mais acolhedora, que saiba como receber o outro, seja um imigrante ou alguém marginalizado na nossa sociedade. Quanto a mim, publicarei um novo livro e pretendo fazer uma segunda edição do Minha Terra Mora em Mim.
Qual a mensagem que fica depois de todo esse trabalho realizado?
Fica o convite para humanizarmos o nosso olhar e enxergarmos o outro como parte de nós, uma extensão nossa. Habitamos uma casa e uma terra em comum, pertencemos a uma única humanidade e um único planeta. Devemos entender nossas diferenças e nossa diversidade como uma fortaleza. Para ter esse entendimento, precisamos sentar, conversar e escutar o outro, enxergarmos além dos nossos interesses. Crises humanitárias e sanitárias podem ser um convite a praticarmos a hospitalidade e a solidariedade. Somos uma coisa só. Minha felicidade está sempre ligada à felicidade do outro.