De tempos em tempos, o Rio Grande do Sul chama atenção no calor da repercussão e da polêmica resultante de alguma manifestação de cunho nazista, a maioria delas cometida por pessoas até então anônimas.
Somente agora, em outubro, ocorreram dois episódios. Primeiro, o piso de um recanto do Parque da Redenção, em Porto Alegre, reformado em 2020, e que supostamente teria pintura de resgate original com traços que lembrariam a suástica. Especialistas ouvidos por GZH refutaram a semelhança, mas, diante de incômodos e reclamações, o prefeito Sebastião Melo determinou a produção de um laudo pela Secretaria Municipal da Cultura sobre a obra. Ele disse que irá determinar a retirada da pintura caso sejam identificadas características nazifascistas.
Nem havia baixado a poeira da polêmica da Redenção, surgiu o caso de uma estudante de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) que comemorou seu aniversário, em Pelotas, com um bolo que trazia estampada a face de Adolf Hitler, o líder da Alemanha nazista, responsável pelo assassinato de milhões de judeus e de outras minorias. Fotos e vídeos foram postados em rede social, o que pode eventualmente configurar delito de apologia ao nazismo, conforme previsão do artigo 20 da lei 7.716/89. A Polícia Civil investiga o caso e a deputada estadual Juliana Brizola (PDT) está requerendo apuração por parte do Ministério Público.
Embora sejam os mais recentes, não são casos isolados. Em 2005, skinheads esfaquearam dois judeus nas ruas do bairro Bom Fim, em um episódio trágico que marcou o Estado. A editora Revisão, que publicava livros revisionistas, antissemitas e de negação do holocausto, teve estande na Feira do Livro de Porto Alegre, sendo retirada somente após pressões de outros livreiros e da sociedade. Outro episódio emblemático foi o do grupo neonazista Neuland, que envolvia extremistas do sul do Brasil e culminou no assassinato de um casal membro da célula por disputa de poder na região metropolitana de Curitiba, em 2009. O crime resultou em uma prisão em Teutônia, no Vale do Taquari, além de outras no Paraná e em São Paulo.
Há várias possíveis explicações para o histórico de manifestações nazistas que pululam no Rio Grande do Sul historicamente. A mais óbvia delas é a forte imigração alemã e italiana para o Estado a partir do século 19.
— Temos um Estado com longa tradição autoritária na política, com colonização europeia bastante expressiva de alemães e italianos. Durante o período de ascensão de Mussolini na Itália e de Hitler na Alemanha, isso acabou engajando muitos imigrantes por aqui, inclusive os que já eram nascidos no Brasil. Eram militantes e simpatizantes, existiam reuniões em várias cidades para discutir o que acontecia na Alemanha e, além disso, as relações comerciais e o intercâmbio cultural eram muito fortes — diz Éder da Silveira, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Os apontamentos do acadêmico podem ser identificados com um breve olhar para a sociedade civil gaúcha, suficiente para encontrarmos dezenas de associações e clubes tradicionais de origem germânica. Os laços, portanto, eram estreitos. Nos anos 1930, antes da queda na Segunda Guerra, era corriqueiro ver desfiles de simpatizantes do nazismo em Porto Alegre, com a bandeira vermelha contendo a suástica ao centro sendo ostentada.
Outra causa possível é a relação do Rio Grande do Sul com o integralismo, movimento originado como tentativa de criar um nacionalismo brasileiro de inspiração nazifascista.
— Naquela época, era bastante diferente de hoje a percepção que o mundo tinha da Alemanha se reconstruindo sob o comando do Hitler. Hoje somos sabedores da barbárie que aconteceu. Lá no começo, isso era denunciado por alguns intelectuais e autoridades europeias, mas não era amplamente reconhecido. E aqui no Rio Grande do Sul, nesse contexto, os imigrantes tinham engajamento e simpatia com o nazismo — diz Silveira, indicando uma carga histórica e cultural que pode ter influenciado as gerações posteriores.
As manifestações atuais no Estado também ocorrem em paralelo a uma percepção geral de crescimento das ideologias extremistas. Não trata-se de uma exclusividade gaúcha. Os ecos são percebidos também em outros Estados de colonização europeia tradicional, como Santa Catarina, Paraná e São Paulo.
Presença no Sul
A juíza federal Claudia Dadico, da 7ª Vara Federal de Florianópolis, especializada em matéria criminal, passou a estudar os discursos de ódio em 2016, tendo concluído um doutorado em 2020, sob a perspectiva do Direito e das políticas de segurança pública diante do extremismo excludente.
Reproduzindo dados da pesquisadora e antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, da Unicamp, a magistrada destaca que existem 349 células de inspiração nazista em atividade no Brasil.
— O meu estudo aponta que o ódio, mais do que sentimento, emoção ou fenômeno da natureza entre um indivíduo e outro, é um item estrutural da constituição do Estado. O Estado se organiza a partir da ideia da supremacia de um determinado grupo que está no poder. Mas, em determinados momentos da história, isso vai ser exacerbado. Estamos atravessando justamente um momento desses. É um fenômeno mundial de extrema-direita baseado em supremacia racial. Isso eclode com força no mundo e o Brasil não fica de fora — avalia Claudia.
O aquecimento da ideologia nazifascista, historicamente vinculada a perseguições e assassinatos em massa, também foi identificado pela ONG SaferNet Brasil, que atua na defesa dos direitos humanos na internet há 15 anos. Dados da instituição mostram que, em 2019, ela recebeu e processou 1.071 denúncias anônimas de neonazismo, as quais envolviam 544 páginas virtuais distintas.
Do total, 212 puderam ser removidas. Já em 2020, essa mesma estatística deu um salto: foram recebidas e processadas 9.004 denúncias a respeito de 3.884 páginas neonazistas distintas. Foram removidos 1.659 endereços eletrônicos. O crescimento nas denúncias, de um ano para o outro, foi superior a oito vezes.
Para Thiago Tavares, diretor-presidente e fundador da SaferNet Brasil, o contexto da política brasileira também é parte do aumento das manifestações neonazistas.
— A radicalização do discurso político e a postura belicosa do presidente Jair Bolsonaro e alguns membros do governo, utilizando-se muitas vezes de linguagem e iconografia que são cultuadas por grupos neonazistas, têm legitimado e empoderado as células extremistas que atuam principalmente na Região Sul do país, e amplificando o ódio, o preconceito e a intolerância contra quem pensa diferente — afirmou Tavares.
Relações com outros países
As declarações do dirigente da SaferNet vão ao encontro da recente reunião de Bolsonaro, divulgada em imagens, com a líder da extrema-direita alemã Beatrix von Storch, neta do ministro das Finanças de Hitler. Também marcante foi a manifestação do ex-secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, que copiou a estética e trechos de um discurso de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, ao divulgar o Prêmio Nacional das Artes do governo Bolsonaro. Alvim acabou caindo do cargo após a repercussão negativa.
Além da juíza Claudia, outros pesquisadores apontam o contexto internacional como causa, com avanço da extrema-direita em países como Estados Unidos, França, Hungria e Polônia, embora em alguns um certo refluxo seja observado. A vida real do indivíduo também é avaliada como meio de guinada aos extremos em tempos ruins.
— Em geral, os períodos de crise econômica permitem a radicalização política. São momentos que ajudam a florescer alternativas salvacionistas e autoritárias. Verificamos isso no eleitorado de Donald Trump, muito forte em regiões empobrecidas, de população branca e industrial dos Estados Unidos. Isso é até um espelhamento do período do nazifascismo, que se estruturou em uma Europa pós-Primeira Guerra Mundial empobrecida. A Alemanha vivia hiperinflação e o período era de muita miséria — diz Silveira.
Para a magistrada de Florianópolis, ainda há dificuldade no Brasil em identificar os crimes de ódio.
— O discurso de ódio já é um ato, mas o mais preocupante é quando esses discursos passam a incitar a violência, fazer apologia a criminosos, e criam um pano de fundo estimulante para a prática de delitos. Existe muita confusão por parte dos juristas em confundir discurso de ódio com liberdade de expressão. Manifestações desagradáveis são uma coisa, mas a incitação à violência e à exclusão de pessoas da vida social estão fora do que é a liberdade de expressão — avalia a juíza, autora do livro Crimes do Ódio - Diálogos entre a Filosofia Política e o Direito.