Ao ingressar com ação no Supremo Tribunal Federal (STF), na última quinta-feira (19), para impedir a Corte de abrir inquérito sem ser provocado por outro órgão, o presidente Jair Bolsonaro adicionou mais uma peça no xadrez institucional do país. Atentos à guerra travada entre o chefe do Executivo e a cúpula do Judiciário, juristas acompanham o embate com atenção e divergem sobre os fundamentos jurídicos do processo.
Para alguns, o STF só poderia abrir procedimentos de investigação se instigado pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Para outros, a posição da Corte tem previsão legal e resulta da omissão da PGR. Agora, caberá aos ministros julgar o pedido de Bolsonaro.
Na ação apresentada pela Advocacia-Geral da União (AGU), o presidente solicita a suspensão do artigo 43 do regimento interno do STF. É esse dispositivo que autoriza a Corte a instaurar inquérito de ofício, isto é, por vontade própria, sem envolvimento da PGR. O regimento prevê que, "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro".
A iniciativa do presidente, que apresentou ao Senado pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, é vista como uma reação a decisões recentes do Judiciário relacionadas ao inquérito das fake news.
No início de agosto, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Moraes determinou a inclusão de Bolsonaro como investigado no caso, que apura a disseminação de mentiras na internet. O processo foi instaurado à revelia da PGR, em 2019, por decisão do então presidente da Corte, Dias Toffoli.
A AGU argumenta que a forma como o artigo 43 vem sendo aplicado fere "preceitos fundamentais" da Constituição, sob a justificativa de que “somente o Ministério Público detém a prerrogativa de demandar a decretação das medidas eminentemente investigatórias que demandam autorização judicial”.
Ministro do STF recém-aposentado, Marco Aurélio Mello afirma que a ação de Bolsonaro é válida e que o argumento da AGU converge com o que ele próprio pensa. Mello lembra que, em junho de 2020, por 10 votos a um, o plenário decidiu pelo prosseguimento do processo, ratificando a posição inicial. Ele foi o único a votar contra.
— Sustentei, na bancada, o que estão sustentando agora nessa ação. Fui vencido nessa tese, mas a ilustrada maioria não me convenceu. Inquérito é instaurado por provocação da polícia ou por requerimento do Ministério Público, porque o nosso sistema é acusatório, e aí, evidentemente, o órgão julgador não pode ter a iniciativa. Agora vamos aguardar para ver o que o Supremo vai proclamar — afirma Mello.
Para o ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp, o STF dificilmente voltará atrás, mesmo “fragilizado”. Dipp avalia que Toffoli tomou a iniciativa de abrir o inquérito porque “houve omissão da PGR”, ainda que esse procedimento, na opinião dele, tenha fugido da normalidade.
— Não é o normal abrir um inquérito dessa forma (sem ouvir a PGR), mas o STF referendou essa tese e já abriu precedente dizendo que é possível, numa interpretação muito rigorosa e aberta. A ação não vai vingar, embora o STF viva um momento de fragilidade. Pela primeira vez, acho que o presidente Bolsonaro pegou um tema que é de certa maneira fácil de defender, pelo menos perante o sistema acusatório que vigora no nosso sistema penal. É um momento de fragilidade do STF e que foi bem aproveitado, por incrível que pareça, pelo nosso insano presidente — diz Dipp.
A ação de Bolsonaro, na avaliação do advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, é um ato de autodefesa. Kakay sustenta que o regimento do STF foi usado de forma correta.
— É uma decisão, do meu ponto de vista, mais defensiva de Bolsonaro, porque o presidente está vendo, cada vez mais, as investigações chegarem até ele e sua família. Esse inquérito tem previsão clara no artigo 43 do regimento do STF, que tem força de lei — sintetiza.
Professor da FGV Direito Rio, Thiago Bottino também vê a atuação do Supremo como constitucional, em especial após a confirmação quase unânime no plenário, em junho.
— A verdade é que o STF só chegou nesse ponto porque o próprio Ministério Público se colocou de forma a tornar isso necessário. E é uma situação muito excepcional. Ninguém acha que juiz de primeiro grau pode sair instaurando inquérito. Essa previsão está exclusivamente no regimento do Supremo. Não tem risco de que isso subverta o sistema acusatório no Brasil — avalia Bottino.
Histórico da polêmica
- O presidente Jair Bolsonaro e o advogado-geral da União, Bruno Bianco, questionam o artigo 43 do regimento interno do STF, que sustentou a abertura do inquérito das fake news, em março de 2019, para apurar a disseminação de mentiras e ameaças a ministros do tribunal
- O artigo 43 diz que "ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro ministro"
- A ação de Bolsonaro pede a suspensão do artigo, sob o argumento de que permite "violação persistente e difusa de direitos fundamentais dos acusados" e dificulta a atuação do Ministério Público Federal
O inquérito das fake news
- Instaurado por decisão do então presidente do STF, Dias Toffoli, o inquérito foi alvo de questionamento pelo Ministério Público Federal e de críticas em parte do meio jurídico à época de sua abertura
- Em junho de 2020, o STF decidiu, por 10 votos a um, dar prosseguimento ao inquérito
- A partir daí, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, autorizou medidas contra a disseminação de ameaças e de falsidades na internet, incluindo um operação contra empresários e blogueiros ligados a Bolsonaro
- Em 4 de agosto deste ano, a pedido do Tribunal Superior Eleitoral, Bolsonaro foi incluído no caso, em razão dos ataques do presidente às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral
A quebra de braço
- Desde então, as relações entre Bolsonaro e o STF pioraram, com trocas de farpas em público
- Agora, Bolsonaro ameaça pedir o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso