Marcada por litígios ao longo da história, a relação do governo do Estado com o poder central enfrenta agora uma contenda inédita, motivada por interesses eleitorais. Pré-candidatos ao Palácio do Planalto em 2022, o governador Eduardo Leite e o presidente Jair Bolsonaro passaram as últimas semanas trocando farpas em público.
Disputas são a força motriz da política, mas jamais um governador gaúcho e um presidente da República, ambos no exercício do cargo e com a mesma ambição, haviam se envolvido numa briga pública.
O tom das agressões cresceu na segunda-feira (8), quando Bolsonaro afirmou que Leite havia usado recursos federais destinados à saúde para colocar em dia o salário do funcionalismo, atrasado há 57 meses. Em entrevista ao apresentador José Luiz Datena, na Band, o presidente recorreu a insinuações obscenas.
— Onde o governador do Rio Grande do Sul, que fala muito manso, muito educadamente, uma pessoa até simpática, mas é um péssimo administrador, onde ele enfiou essa grana? Eu não vou responder para ele, mas eu acho que eu sei onde ele colocou essa grana toda aí — disse Bolsonaro.
Leite estava despachando em seu gabinete quando foi avisado da manifestação. Redigiu de próprio punho uma resposta e chamou assessores para gravar um vídeo. Na mensagem, lamentou perder tempo em “esclarecer mentira de quem muito fala e pouco governa”. Atribuindo o pagamento regular da folha às reformas administrativa e da previdência que diminuíram em R$ 700 milhões as despesas de pessoal, lançou um desafio:
— Fundamente o seu ataque, presidente, e responda: que recurso afinal foi enviado para a saúde e não foi enviado à saúde?
Leite e Bolsonaro nunca foram aliados. Na eleição de 2018, o tucano apoiou Geraldo Alckmin (PSDB). No segundo turno, pressionado por aliados a se posicionar entre Bolsonaro e Fernando Haddad (PT) e vendo o adversário José Ivo Sartori (MDB) criar o neologismo Sartonaro, Leite declarou voto no capitão reformado, mas proibiu a confecção de santinhos ou bandeiras conjuntas.
O chamado “apoio crítico” foi oficializado três dias após o primeiro turno, em um vídeo em que Leite repeliu o retorno do PT ao poder e cobrou de Bolsonaro autocrítica sobre “frases e pensamentos que não respeitam a democracia e a existência pacifica e natural de outros seres humanos”.
— Para evitar a volta do PT, vou dar meu voto ao candidato Bolsonaro, mas isso não significa adesão incondicional ao que não traduz minha visão de mundo na política e na vida. Não quero vencer a eleição e perder a alma — afirmou, na época.
Ambos se elegeram e mantiveram uma relação amistosa durante todo o primeiro ano de governo. As rusgas começaram com o surgimento da pandemia, sobretudo após o presidente desferir ataques contra governadores que adotavam restrições à atividade econômica.
Até então, Bolsonaro voltava sua artilharia verbal para João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ), ex-aliados convertidos em adversários por causa sucessão presidencial de 2022. Mais diplomático que os colegas, Leite conquistou uma liderança natural no Fórum dos Governadores e passou a redigir as cartas nas quais o grupo reagia ao Planalto.
A postura mudou no fim de fevereiro, após Bolsonaro divulgar em suas redes sociais uma lista de repasses ao Estados. Na tentativa de culpar os governadores pelo agravamento da pandemia, exibiu cifras imprecisas, somando recursos direcionados à saúde com outros de destinação específica e obrigatória, como royalties do petróleo e fundos de participação. Nas contas de Bolsonaro, o Rio Grande do Sul recebeu R$ 40 bilhões em 2020.
A reação foi imediata. Em suas redes sociais, Leite reclamou do cálculo enviesado feito pelo Planalto. “Se a lógica é essa, fica a dúvida: como o RS mandou pra Brasília R$ 70 bi em impostos federais, cadê os outros R$ 30 bi que enviamos?”. No dia seguinte, o gaúcho escreveu a carta subscrita por outros 18 governadores, na qual reclama que Bolsonaro “parece priorizar a criação de confrontos”.
Em entrevista coletiva para rebater a manipulação dos dados, foi incisivo. Se em julho afirmara ao programa Roda Viva não se arrepender do voto em Bolsonaro, agora chamava o presidente de egoísta e desumano, cujo comportamento estaria “gerando mortes que poderiam ser evitadas”.
— É difícil entender a mente do presidente, ainda mais difícil entender seu coração. É questão de desumanidade, de desprezo pela vida. E choca quando vemos isso no líder da nação. Um líder na posição de presidente da República, que despreza os cuidados sanitários e provoca confusão na sua gente, infelizmente está matando — atacou.
Duas semanas antes, o anúncio de que Leite disputaria com Doria a vaga de candidato do PSDB à Presidência já havia atraído a fuzilaria de apoiadores de Bolsonaro na internet. Ironizando o evento realizado no galpão crioulo do Piratini, um dos filhos do presidente, Carlos Bolsonaro, chamou a reunião de tucanos de “aglomeração do bem”. Os ânimos ficaram ainda mais acirrados com a ampliação das restrições impostas pela bandeira preta que cobriu o Estado no mapa de distanciamento controlado.
Nos bastidores, o governador diz que não inaugurou a desavença e somente agiu em defesa de sua gestão. A despeito da rixa, ele segue tendo boa interlocução com ministros estratégicos, como Tarcísio Freita, na Infraestrutura, e Paulo Guedes, na Economia.
Secretários estaduais com bom trânsito em Brasília, como Marco Aurelio Cardoso (Fazenda) e Ana Amélia Lemos (Relações Federativas), também colaboram no diálogo institucional. Com a entrada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no tabuleiro da eleição de 2022, Leite espera sair do alvo bolsonarista e se credenciar como opção moderada no centro político.