Pioneira no país no julgamento de prefeitos e citada como modelo de combate à corrupção, a 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça (TJ) do Estado ingressa em seu trigésimo ano de atividade fazendo jus à fama. Em média, o colegiado condena um prefeito por mês.
A atuação de um dos mais temidos órgãos do judiciário gaúcho foi tema de estudos de três cientistas políticos. Em teses de mestrado e doutorado, os pesquisadores Bruno Alex Londero, Juliane Sant'Ana Bento e Luciano Da Ros dissecaram 1.716 ações penais julgadas pela 4ª Câmara desde sua criação, em 1992, até 31 de dezembro de 2016.
No final do ano passado, eles publicaram um artigo na Revista de Ciências Sociais da PUCRS, compilando os dados das três pesquisas. O resultado é um retrato fidedigno de como a cultura do foro privilegiado encontrou no aparato judicial do Estado um ambiente ágil e eficaz para julgar os crimes supostamente cometidos pelos gestores municipais.
– O estudo mostra que a 4ª Câmara é um ponto fora da curva no Brasil não porque condena, mas porque julga. Levantamentos semelhantes, sobretudo feitos no Supremo, mostram que o STF não julga. Os ministros sentam-se nos processos e esperam. Assim é na maior parte dos tribunais – comenta Da Ros.
Qualidade
Conforme as descobertas do trio, foram 315 condenações em 25 anos, 85% delas por corrupção. Todos os gestores foram sentenciados a penas que preveem privação de liberdade, mas muitos escaparam da cadeia em troca de prestação de serviço comunitário ou multa, entre outras medidas. Em sua maioria, pertenciam a PP, MDB e PDT, siglas que tradicionalmente governam o maior número de municípios no Estado.
"Além disso, os três partidos com maior número de processos e condenações possuem ideologias das mais diversas, quais sejam: direita (PP), centro (MDB) e esquerda (PDT), reforçando assim a ausência de elementos que indiquem um viés partidário ou ideológico do TJ e da 4ª Câmara", explica Londero em sua dissertação de mestrado.
— Não importa muito a ideologia ou o partido, mas a qualidade da prova — resume Da Ros.
Composta por quatro desembargadores (embora somente três participem de cada julgamento), a 4ª Câmara foi criada a partir da inconformidade dos magistrados com a iminente impunidade que se avizinhava no início dos anos 1990. Como a Constituição de 1988 recém concedera aos prefeitos o foro privilegiado, os processos deveriam ser julgados pelo órgão especial do TJ, formado pelos 25 membros mais antigos da Corte. Conforme Da Ros, durante o intervalo de um julgamentos os desembargadores reclamaram da fragilidade das provas, da escassez de tempo para analisar os casos e do acúmulo de denúncias que prescreviam, causando "a desmoralização da autoridade do tribunal".
— Por isso foi criada a câmara exclusiva: para evitar impunidade. Essa foi a nossa reação e deu muito certo – comenta o atual presidente da 4ª Câmara, desembargador Aristides Pedroso Albuquerque Neto.
Para facilitar a aprovação pela Assembleia Legislativa de mais uma estrutura estatal, o TJ alegou aumento de 30% do volume dos processos, omitindo, segundo os pesquisadores, que o novo órgão iria julgar exclusivamente prefeitos. A novidade no TJ deu origem a atitude semelhante do Ministério Público (MP).
Também criada em 1992, a Procuradoria de Prefeitos é composta hoje por 30 servidores, entre eles uma procuradora, cinco promotores e um auditor cedido pelo Tribunal de Contas (TCE), além de assessores jurídicos e especialistas em softwares de extração de dados. Juntos, eles lidam atualmente com 752 procedimentos, sendo 115 processos tramitando na 4ª Câmara e 637 investigações em andamento.
— Toda vez que a Procuradoria deflagra uma operação, com agentes nas ruas e afastamento de prefeitos, surgem muitas denúncias novas. As pessoas se sentem encorajadas a denunciar quando veem que algo está sendo feito.
O processo criminal também tem essa finalidade, de desestimular a conduta criminosa – afirma a chefe da Procuradoria, Ana Rita Schinestsck, há seis anos à frente da equipe.
Conjunção de esforços entre órgãos
Segundo o estudo do trio de pesquisadores, a 4ª Câmara Criminal do TJ, o TCE e a Procuradoria compõem o "triângulo de ferro", um conjunto institucional capaz de aperfeiçoar o andamento dos processos e, ao cabo, o próprio funcionamento da Justiça. Não por acaso, em torno de 80% das denúncias apresentadas pelo Ministério Público são fundamentadas em relatórios do TCE que, segundo documento do próprio TJ, é a "polícia judiciária da administração municipal".
– O estudo mostra que quanto maior o número de relatórios e de volumes tiver o processo, maior a chance de condenação. Muitos políticos acham que as ações do TCE não geram consequência em função da origem política dos seus integrantes. Estão enganados – diz o pesquisador Luciano Da Ros.
Comportamento
A despeito do resultado efetivo dessa conjunção de esforços, em alguns municípios o comportamento delituoso dos políticos parece reiterado. Em Triunfo, na Região Carbonífera, os prefeitos já responderam a 54 processos no total. Desde 1988 nenhum gestor termina o mandato sem ter contra si ao menos uma denúncia formalizada na 4ª Câmara. A única exceção foi Marcelo Essvein (PDT), eleito em 2012 mas que acabou cassado por abuso de poder econômico. Somente o ex-prefeito Bento Gonçalves dos Santos (PP) foi réu 29 vezes.
Para o desembargador Aristides Pedroso, é urgente reforma de legislação que aprimore os mecanismos de controle e estabeleça penas mais pesadas a quem praticar crimes na administração pública.
– Claro que é preciso rigor na garantia dos direitos, no respeito aos prazos, mas também rigor a favor do Estado, da sociedade. A pena precisa ter esse aspecto pedagógico, intimidatório – pontua.