No crepúsculo de sua gestão à frente da Assembleia Legislativa, Luis Augusto Lara (PTB) conduziu com rara serenidade a votação de uma reforma histórica nas carreiras do funcionalismo estadual. Deputado em sexto mandato, o bajeense de 51 anos abriu a Casa para os servidores sem recorrer à limitações de acesso, tampouco instalou gradis ou chamou a Brigada Militar para guarnecer o prédio. Após três dias de convocação extraordinária, não houve registro de tumultos ou confusões.
A única correria digna de nota foi a do próprio presidente. Durante a conversa com GaúchaZH, no início da tarde de quinta-feira (30), Lara teve de deixar duas vezes a sala para resolver pendências no plenário no último dia de votações do pacote. O almoço acabou esfriando e ele suspendeu a refeição. Dois quilos mais magro, na próxima segunda-feira (3), Lara transmite a presidência do Legislativo ao deputado Ernani Polo (PP).
A partir daí, terá por objetivo inarredável reverter a cassação do mandato imposta em outubro pelo Tribunal Regional Eleitoral. Pretende cursar uma especialização em Direito Eleitoral para reforçar sua defesa e, voltando à planície do plenário, se dedicar a temas como uma lei de incentivo às Santas Casas. Sem projetos eleitorais pela frente, diz ter apenas uma certeza: não pretende deixar a política tão cedo.
— Eu nasci parar estar engajado, para fazer mobilização. Vou morrer na cancha — projeta, parafraseando o ex-governador Leonel Brizola.
A seguir, os principais trechos da entrevista
Quais foram as principais dificuldades de exercer a presidência da Assembleia em meio à aprovação da mais profunda reforma dos servidores?
Começa pelo maior número de bancadas da história: 17. Quando cheguei aqui, em 1998, tinha seis, oito partidos. Essa mesa (aponta para mesa de reuniões, com 23 lugares) nunca enchia, agora a gente precisa buscar mais cadeiras. Ter participado de governos com matizes ideológicos diferentes me ajudou a ter mais empatia. Consegui manter diálogo com todo mundo, da bancada do PSOL à do Novo. Então o principal desafio foi construir internamente, estabilizar e chamar à razão. Já seria difícil naturalmente. Num ambiente reformista, mais ainda. E não tivemos uma grade na frente da Assembleia, um brigadiano.
Como o senhor conseguiu manter esse ambiente em meio a uma reforma tão ampla?
Com diálogo permanente com as categorias, chamando os sindicatos, avisando que todos teriam livre acesso e alertando que se houvesse algum tumulto as votações ocorreriam sem a presença deles aqui dentro. Outra coisa ajudou: os deputados fizeram o dever de casa. Terminamos com o auxílio-mudança, congelamos nossos salários, extinguimos privilégios e o plano de previdência dos deputados.
Nesse processo interno de reformas, na Assembleia e nos outros poderes, de onde partiram as maiores pressões?
De todos os lados. Nós derrubamos honorários de sucumbência dos procuradores do Estado, tive que notificar presidente do Tribunal de Justiça para que explique o aumento de 16,38% que foi autoconcedido. Com o Ministério Público, também. Dá para trabalhar com menos. Aqui queriam fazer concurso para taquígrafos, mas para isso tem tecnologia: tu fala e o Google escreve. Mas a pressão mais forte foi no litígio dos poderes pelo congelamento do orçamento. Fiz jantares, reuni governador, o presidente do TJ, mas não consegui evitar (o impasse). Aqui dentro, a pressão maior foi e continua sendo pelo pagamento das URVs. Nós temos gente aqui que tem R$ 700 mil para receber. A conta está em R$ 600 milhões. Vocês não imaginam as propostas que recebi, algumas em tom de ameaça.
Por exemplo...
Tipo assim: te ajudamos muito até aqui, agora está na hora de tu nos ajudar. Não cedi. Como vou pagar R$ 700 mil, R$ 500 mil, R$ 50 mil que seja, para alguém, se estamos cortando dos professores, dos brigadianos?
Na esteira dessa polêmica, o senhor vê ambiente para uma CPI do TCE, em função dos pagamentos de licença-prêmio de quase R$ 700 mil?
Eu tentei fazer aqui uma CPI dos incentivos fiscais e não consegui. O problema é que as CPIs ficaram desmoralizadas. E, no caso do TCE, não há um crime. Há uma conta que hoje não cabe mais. O TCE é um órgão auxiliar da Assembleia e hoje consome praticamente o mesmo valor em recursos que a própria Assembleia. Começa a crescer uma tese de que pode ser mais barato contratar auditorias do que manter um tribunal de contas.
Qual a próxima reforma necessária?
A revisão dos incentivos fiscais. Tenho dito ao governador que as reformas começam com os servidores, mas precisam ir além. Até porque é exigência do regime de recuperação fiscal reduzir em 10% os incentivos. Ele me disse que até maio apresenta um novo plano. Mas não basta só reduzir, tem que haver transparência e calibragem. Dizem que dos R$ 9 bilhões em incentivos, só R$ 3 bilhões podem ser revistos. Que seja. Nós aumentamos o ICMS sobre luz e combustíveis para arrecadar mais R$ 2,5 bilhões. O nosso agronegócio é de ponta, representa 40% do PIB (Produto Interno Bruto), mas bateu no teto. É preciso investir em outros setores, como tecnologia e inovação.
A Assembleia enfrentou denúncias de fraudes na indenização veicular, mau uso das diárias. Como corrigir essas distorções?
Eu busquei os mesmos modelos dos órgãos de fiscalização como Ministério Público e Tribunal de Contas. E mudamos os critérios para fazer uma prestação de contas muito mais rígida que a deles. Reduzimos drasticamente o gasto. Nós somos o poder mais exposto, mais vigiado. E não há o que esconder na Casa, até porque aqui um vigia o outro. Às vezes, o teu concorrente está dentro da tua bancada.
Melhorou a transparência?
Bastante, a ponto de termos todos os contratos da Casa, quando ainda está sendo feito, na internet. E vai online para o TCE. Tinha gente aqui que não queria que eu fizesse isso. Quando eu assumi, tinham comprado R$ 6 milhões em ar-condicionado, isso num prédio que tem sistema central. Estavam todos na saída da garagem, caixas e caixas. E tinha auditoria do tribunal de contas em cima. Mandei devolver. Disseram que eu teria que pagar os R$ 6 milhões, mas até hoje juiz nenhum mandou pagar.
Em que pese todas essas medidas, o senhor é o único presidente da Casa cujo mandato foi cassado durante a gestão. Isso lhe constrange diante dos pares?
Não constrange porque durante todo o processo não existe um fato meu, uma ligação, um pedido. Não estamos tratando de improbidade, desvio de dinheiro, roubo. Eu fui condenado no TRE por um voto de diferença porque o prefeito de Bagé teria cometido abuso de poder e de autoridade e isso teria me beneficiado. Em 11 meses de escutas telefônicas, não há um pedido meu, algum conhecimento meu.
A que o senhor atribui a condenação?
O autor do voto divergente disse que eu fui beneficiado porque fiz 20 mil votos em Bagé. Mas ele esqueceu de dizer que em outras eleições eu fiz 26 mil, 23 mil votos.
Mas o prefeito é seu irmão e tem vários indícios no processo, como antecipação do pagamento do 13º, pago um dia antes do jantar de arrecadação de fundos para sua campanha e que teve mais de 200 servidores comprando convite. Há diálogos dos secretários pressionando pela compra.
A prefeitura tem 5 mil servidores, foram 238 CCs que pagaram R$ 250. E não há um único que diga: "Eu fui impelido". Tem um diálogo dele (do prefeito) dizendo aos secretários: "Gente, ou vocês vendem ou tem que comprar". Bom, isso é até com rifa de igreja. O nascedouro disso é a briga do PT com o PTB em Bagé. Chega aqui com o presidente da Assembleia fazendo um enfrentamento pesado com o Tribunal de Justiça, com o Ministério Público. Duvido que se fosse hoje teríamos essa mesma divergência que houve aqui. O Judiciário estava de greve, um momento eleitoral.
O senhor acha que foi retaliação?
Acho que foi tudo junto. A instabilidade que vivia o Judiciário, na véspera de eleição, no meio de uma greve. E a greve era apoiada e incitada pelo PSOL, que era o pretendente da minha cadeira. Eu estou entre o mar e o rochedo, sou o marisco. Tenho certeza que no TSE isso será revertido.
Como o senhor resume esse ano na presidência?
Um enorme aprendizado. Perdi minha irmã mais nova para o câncer, foi muito duro para mim. Foi o ano das reformas, então convivi com as angústias das pessoas. Talvez tenha sido o maior exercício de convivência que fiz em toda a minha vida.