Sancionada em setembro pelo presidente Jair Bolsonaro, a Lei de Abuso de Autoridade e seus efeitos sobre o trabalho de quem atua no enfrentamento ao crime no Brasil foram alvo de debate, nesta segunda-feira (21), em Porto Alegre. Em evento realizado na sede do Ministério Público do Estado (MP), autoridades definiram o novo regramento como ameaça à democracia e ao Estado de Direito. O texto é alvo de questionamentos no Supremo Tribunal Federal (STF).
— A lei tem contexto e endereço certos: intimidar e retaliar todos os órgãos, instituições e poderes que participam diretamente do combate à corrupção e à criminalidade — disse o procurador-geral de Justiça, Fabiano Dallazen, diante de auditório quase lotado.
Para integrantes do MP, do Judiciário, da Procuradoria Regional da República e das forças policiais, o texto aprovado no Congresso freia o poder de investigação e a capacidade de penalizar criminosos, impondo retrocessos ao país.
Sob forte pressão, Bolsonaro vetou itens do texto original, mas parte os vetos acabou derrubada pelos parlamentares — o que foi comemorado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), sob o argumento de que a lei reforça os direitos de defesa dos cidadãos. Com o revés, ficaram definidas, por exemplo, punições a autoridades que iniciarem "persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente" e que estenderem "injustificadamente a investigação, procrastinando-a em prejuízo do investigado ou fiscalizado". Também ficou estabelecida pena de um a quatro anos de prisão ao juiz que decretar prisão em "desconformidade com as hipóteses legais".
Na avaliação do presidente do Tribunal de Justiça do Estado, Carlos Eduardo Duro, as subjetividades do texto são prejudiciais.
— Editou-se a lei com conceitos abstratos, amplos, o que gera insegurança jurídica. Não há necessidade dessa nova legislação, porque temos regramentos já existentes. O fato é grave, merece repulsa e acabará por atingir toda a sociedade — advertiu Duro.
Procurador-chefe da Procuradoria Regional da República da 4ª Região, Marcelo Veiga Beckhausen foi ainda mais incisivo:
— Não é um ataque ao promotor de Justiça ou ao juiz que eventualmente comete um equívoco, o que ocorre é um ataque frontal ao Estado Democrático de Direito.
O superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, Alexandre Isbarrola, também teceu críticas à normativa. O delegado lembrou de avanços recentes na legislação, voltados, por exemplo, a coibir a lavagem de dinheiro e a atuação de organizações criminosas, mas concluiu que, dessa vez, "a dose foi excessiva".
— A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. Temos um veneno que veio matar o sistema de Justiça no combate à criminalidade — declarou Isbarrola.
Os resultados disso, alertou o secretário estadual da Administração Penitenciária, Cesar Faccioli, poderão se traduzir em mais insegurança e novos desvios de recursos públicos, porque, segundo ele, os agentes que atuam na linha de frente terão receio de agir. Faccioli afirmou se tratar da "maior ameaça à democracia brasileira desde 1988".
— A consequência é um grande constrangimento, quase uma coação. E o efeito disso é o não fazer, o não consumar uma investigação ou operação. Teremos uma histórica frenagem no movimento virtuoso de enfrentamento da corrupção — destacou Faccioli.
Entre setembro e outubro, diferentes entidades decidiram recorrer ao STF na tentativa de reverter a situação, entre elas as associações dos magistrados brasileiros, dos procuradores da República e dos membros do MP. Dallazen disse esperar que o STF dê resposta favorável e garantiu que "a intimidação não surtirá efeito".
— Essa lei, embora tenha objetivo de intimidar os órgãos que fazem a repressão do crime organizado e da corrupção, não vai atingir o intuito. Vamos seguir atuando com seriedade e com muito vigor — afirmou o procurador-geral.
O evento contou com o apoio da Associação Riograndense de Imprensa (ARI). Para o presidente do conselho do órgão, João Batista Filho, "travas não podem ser colocadas no desempenho da Justiça, do MP, das policiais civis e militares".