Um dos mais respeitados juristas do país, o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, se diz perplexo com a mais recente polêmica nacional. Sem conseguir identificar os caminhos naturais que deve seguir a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco, agora envolvendo a citação do nome do presidente Jair Bolsonaro, Dipp enxerga uma turbulência jurídica e política contaminando as instituições do país.
Para ele, Bolsonaro inclusive já forneceu motivos suficientes para responder um processo de impeachment pelo conjunto de ações que teriam, na sua opinião, quebrado o decoro do cargo, culminando com o vídeo em que compara o Supremo Tribunal Federal (STF) a uma hiena e aos rumos da apuração policial do caso Marielle. Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Quais os próximos passos para essa investigação envolvendo o presidente Jair Bolsonaro na morte da vereadora Marielle Franco?
O que se tem é apenas uma noticia de que houve uma gravação na entrada do condomínio onde mora o presidente. Isso foi noticiado por um órgão de imprensa, a TV Globo. E a imprensa não comete crime de vazamento. Se alguém cometeu um ato criminoso foi aquele que vazou para a imprensa. O que pode acontecer é um aprofundamento das investigações.
Por quem?
Houve uma menção ao presidente. Agora é necessário aprofundar a investigação para ver se é caso de deslocamento do processo para o Supremo Tribunal Federal. O procurador-geral da República, Augusto Aras, diz que o presidente é vítima. Não sei de onde ele tirou que é vítima. Essa é uma interpretação. Também não sei se o ministro da Justiça (e Segurança Pública, Sergio Moro), a mando do presidente da República, pode pedir investigação à PGR.
Qual seria o correto?
Se tenta trazer para o STF porque a pessoa que foi citada é o presidente da República. Mas em que condições? De réu, não é. De vítima? O procurador-geral disse que vítima não tem foro privilegiado. Mas ele mandou para a Justiça Federal porque certamente vislumbra um interesse da União por ser o presidente vítima. Então veja a confusão jurídica-institucional disso tudo.
"Pode-se elencar uns vinte motivos que podem sim embasar um pedido de impeachment. Mas não vai ocorrer, pois há um silêncio absoluto. O Legislativo está silencioso, a oposição está mitigada."
GILSON DIPP
Ex-ministro do STJ
Como resolver essa confusão?
Aparentemente, ninguém sabe. Por enquanto, não há vítima, nem crime. Apenas uma notícia política. O PGR, que não é o titular dessa ação penal, fala que o presidente é vítima. De que? Calúnia, difamação, obstrução de Justiça? Por que essa gente gosta tanto daquele condomínio? Parece que o Ministério Público do Rio de Janeiro se reuniu com o presidente do Supremo, Dias Toffoli, para saber o que fazer diante da citação do presidente da República. A motivação é nobre, os promotores agiram de boa fé, mas certamente não é esse o melhor caminho. Creio que seria então o caso de o juiz da causa enviar todo o processo ao STF. Mas é muito difícil dar uma opinião jurídica.
Por quê?
Porque há uma confusão muito grande no país. O que era aquele vídeo do presidente da República? É mais uma balbúrdia político-jurídica provocada pela insensatez que chega às raias da inimputabilidade. É o presidente, seus filhos, os ministros, o PGR, todo mundo fazendo juízo antecipado de algo que ninguém sabe direito como ocorreu. Estamos passando por um momento grave.
O que está ocorrendo de tão grave?
O Brasil está sendo governado por pessoas que não tem qualquer noção de sensatez e ninguém se manifesta. Todo mundo fica passando a mão na cabeça do presidente como se ele fosse inimputável. Como pode o presidente ter as senhas de suas redes sociais espalhadas por um conjunto de pessoas? Daí publica um vídeo como aquele das hienas, depois tira, pede desculpas e fica tudo por isso mesmo? A colocação do vídeo já é motivo para um impeachment.
O país faria outro ato de ruptura com um novo impeachment?
Não vai fazer. O que eu digo é todos esses atos, de incitação à violência, de propaganda da ditadura, de armamento, homofobia, tudo isso é falta de decoro no exercício da Presidência da República. Há fundamentos necessários, e aí pode-se elencar uns vinte motivos que estão na Lei de Responsabilidade, que podem sim embasar um pedido de impeachment. Mas não vai ocorrer, pois há um silêncio absoluto. O Legislativo está silencioso, a oposição está mitigada. O STF emitiu apenas uma nota do decano (ministro Celso de Mello). O Brasil está entregue a quem? O ministro da Justiça saiu em defesa, é quase um advogado do presidente da República. É uma instabilidade, uma falta de responsabilidade de todos. Todos que compõem o Executivo são coniventes com a postura do chefe.