Com 47 anos de experiência como correspondente no Brasil, o norte-americano Larry Rother conhece o país melhor do que muitos brasileiros. Natural de Oak Park, perto de Chicago, Illinois, chegou ao Rio de Janeiro como enviado da revista Newsweek nos anos 1970. Traduzia para leitores norte-americanos a realidade do Brasil sob o jugo autoritário dos militares, enquanto buscava diferenciar o regime verde-amarelo do imposto aos vizinhos latino-americanos. No The New York Times, ganhou fama em 9 de maio de 2004 ao sugerir, em uma reportagem, que o então presidente Lula tinha problemas com álcool. Rother, que é apaixonado pelo Brasil, teve o visto cassado e foi ameaçado de expulsão do país. Mais recentemente, antes de deixar o Rio e se mudar para Nova York, dedicou-se a contar a história do marechal Cândido Rondon, engenheiro militar e sertanista famoso por sua exploração de Mato Grosso e da Amazônia e seu apoio às populações indígenas. Nesta entrevista, concedida por telefone, conta suas incursões pelo Brasil profundo – recentes e antigas.
O marechal Cândido Rondon é uma personalidade histórica que dá nome a praças, já esteve estampada em cédulas da moeda brasileira (Cruzeiro), batiza o estado de Rondônia, mas ainda é um desconhecido para boa parte da população. A origem e a cor da pele do militar contribuíram para que ele não fosse reconhecido nacional e internacionalmente?
A visão transmitida nas aulas de História é unidimensional. Todo brasileiro já ouviu falar de Rondon, mas o que sabe é muito pouco. Eu queria mostrar a quem já conhece esse nome as outras facetas do homem e de sua vida. Mostrar que ele, além de ser um grande explorador, também foi uma figura importante na Primeira República (1889–1930) e na época da ditadura varguista (1937–1945). De certo modo, ainda hoje o Brasil vive sob o seu legado em determinados assuntos políticos. Eu sabia que estava escrevendo um livro para dois públicos diferentes. O nacional e também o internacional, que talvez nem tenha ouvido falar dele. E, se ouviu, é sempre no contexto da Expedição Roosevelt-Rondon (entre 1913 e 1914, viagem para desbravar a Amazônia). Mas sempre como coadjuvante. Eu queria ressaltar que o papel de Rondon naquela expedição tão célebre era de liderança. Também queria mostrar ao leitor estrangeiro o gênio de Rondon: um general pacifista, um cientista indígena.
Você coloca Rondon no patamar de grandes exploradores mundiais, como David Livingstone. No livro, afirma que havia preconceito da Real Sociedade Geográfica, árbitro de tudo o que dizia respeito a explorações e geografia. Um preconceito colonial, do branco dominador.
A história da Primeira República está longe da atualidade. Então, algumas das façanhas de Rondon ficam esquecidas. Todo mundo afirma: “Foi ele que abriu a Amazônia, o grande explorador, o cara que cunhou aquela famosa frase: ‘Morrer se preciso for, matar nunca’”. Mas, fora isso, acho que algumas de suas conquistas ficaram esquecidas. Por exemplo: todo mundo pensa em Rondon no contexto amazônico ou do Centro-Oeste, mas uma das coisas que o livro mostra é o relacionamento estreito que ele tinha com o Rio Grande do Sul e com políticos e militares gaúchos. Alguns dos momentos importantes da vida dele se deram no Rio Grande do Sul. Foi preso em Marcelino Ramos, em 1930, ficou um mês detido em Porto Alegre. Antes, quando era chefe de Engenharia do Exército, viajava pelo interior do Estado, pela fronteira. Quando chefiava a Inspetoria de Fronteiras, passou bom tempo no Sul. Quando lutou contra as forças lideradas por Luiz Carlos Prestes e Miguel Costa, não foi no Rio Grande do Sul, mas a Coluna saiu do Estado. Quando digo que queria mostrar facetas desconhecidas de Rondon é esse tipo de coisa. Posso dizer o mesmo sobre a relação de Rondon com o Nordeste. Ele foi uma figura nacional.
Como a expedição Roosevelt-Rondon é conhecida nos EUA?
Já houve vários filmes e um bocado de livros sobre a expedição, mas sempre com Roosevelt no papel de destaque. Acho isso normal: ele é um ex-presidente dos EUA, uma figura importante no país etc. Mas eu queria escrever uma nova versão da expedição dando destaque a Rondon. Contar a história da expedição do ponto de vista dele.
Chama a atenção um ex-presidente dos EUA fazendo uma expedição pela Amazônia.
Isso tem a ver com as várias aspirações de Roosevelt. Ele queria dar palestras nas principais cidades da América do Sul, não apenas no Brasil. Ao mesmo tempo, estava ansioso para encabeçar uma aventura. Ele tinha feito um safári na África, era cowboy no Velho Oeste americano. Gostava de desafios e nunca encontrou nada tão desafiante quanto a Amazônia.
Há coisas hoje no Brasil que preocupariam Rondon. Ele foi um dos primeiros ambientalistas, um defensor dos povos indígenas. Agora, o que diferencia o Brasil do século 21 do país na época de rondon é a presença de ONG's. Elas não têm medo.
Por onde você andou no Rio Grande do Sul?
Fui de Porto Alegre a Santo Ângelo pela via terrestre. Em Santo Ângelo, passei quatro ou cinco dias pesquisando no Museu Rondon, na guarnição militar. Há, lá, um acervo muito interessante de documentos. E também uma sala com objetos que ele usava, inclusive as bandeiras americana e brasileira da expedição Roosevelt-Rondon. Lá estão também o revólver que ele usou na derrubada do imperador em 15 de novembro de 1889 (Proclamação da República), além de cartas, instrumentos de trabalho para fazer cartografia. É um acervo muito interessante.
O que encontrou em Porto Alegre?
Eu já havia viajado pelo Sul, por Pelotas e pela fronteira com o Uruguai; já sabia de antemão como era o terreno onde ele teria viajado. Mas passar por Santa Maria e por lugares como Santo Ângelo foi importante para a pesquisa. Gostaria de destacar o relacionamento de Rondon com várias figuras da política gaúcha. Claro que o livro mostra a desconfiança mútua entre Rondon e Getúlio Vargas. Mas também falo da relação de Rondon com Osvaldo Aranha, com Borges de Medeiros e outros. Mesmo sendo mato-grossense, Rondon era íntimo do Rio Grande do Sul e de suas lideranças.
Como foi possível entender mais sobre a mágoa de Rondon com Getúlio Vargas em razão da Revolução de 1930?
Tive acesso aos diários dele. Sessenta e cinco anos de diários. Eu diria que o momento mais amargo para ele foi a partir de 4 de outubro de 1930, quando eclodiu a Revolução de 1930. Primeiro, ele ficou preso. Segundo, ao ser libertado, ficou no ostracismo no Rio de Janeiro até meados de 1934, quando foi sondado para liderar a missão brasileira para mediar a briga entre Colômbia e Peru na tríplice fronteira. Outra coisa: eu digo no livro que a presidência lhe foi oferecida duas vezes. Essas sondagens aconteceram no Rio Grande do Sul, primeiro com militares que vieram falar com ele, depois o próprio Borges de Medeiros quis que Rondon liderasse um golpe para derrubar Artur Bernardes.
Alguns documentos importantes foram mais fáceis de encontrar nos Estados Unidos do que no Brasil. O orçamento dedicado à preservação de documentos e memória histórica é muito maior nos EUA.
Parte dos arquivos que você usou para contar a história estava no Museu Nacional, atingido pelo incêndio no ano passado. Como foi saber daquela tragédia?
Que coisa triste. Rondon, sendo cientista, queria incentivar as ciências no Brasil. O que colecionou nas expedições é impressionante. Ainda hoje é o maior doador de objetos e espécies para o Museu Nacional. A famosa Comissão Rondon, da linha telegráfica, fazia um trabalho científico em todas as ciências importantes: biologia, botânica, geologia, ornitologia, antropologia, linguística. Rondon queria modernizar as ciências no Brasil. Isso o levou a fazer importantes doações para o Museu Nacional. Passei um mês lá, pesquisando nos documentos, papéis pessoais de Rondon e sua turma, biólogos como Alípio de Miranda Ribeiro, Roquette Pinto, um dos jovens discípulos dele. O museu tinha um acervo realmente impressionante.
A filosofia de Rondon buscava convivência pacífica com os índios, algo já em sua época visto pelo governo brasileiro como um empecilho para sua política. Isso de certa forma une Brasil e EUA, que também dizimaram suas populações indígenas.
Isso é muito triste. Durante a expedição, Roosevelt e Rondon conversavam sobre os povos indígenas e a melhor maneira de lidar com eles. Roosevelt ficou impressionado com a abordagem pacífica que Rondon implementava. No livro que escreveu depois, você percebe as observações que ele fez sobre a maneira como Rondon buscou amizade com os índios. Ele ficou impressionado. Tanto que deixou o filho dele, Kermit, ir sozinho a uma aldeia e passar um dia lá. Isso mostra a confiança que Roosevelt tinha na filosofia de Rondon e os resultados que saíram dessa abordagem.
A partir da pesquisa, como percebe que o Brasil lida com sua história?
As coisas estão melhorando. Mas alguns documentos importantes foram mais fáceis de encontrar nos EUA do que no Brasil. O orçamento dedicado à preservação de documentos e memória histórica é muito maior nos EUA. Um exemplo: Rondon era um positivista ferrenho. E o Templo da Humanidade, no Rio de Janeiro, guarda ainda hoje uma documentação rica sobre isso, inclusive a correspondência dele com líderes da igreja positivista. O templo foi tombado, mas só no papel. O dinheiro nunca apareceu. Com uma chuva forte, o teto desabou e a água entrou. Tudo ficou molhado, mofado, carcomido. Fui várias vezes ao templo. O pessoal quis me ajudar ao máximo, mas eles não têm orçamento para preservar não só os documentos relacionados a Rondon, mas a Benjamin Constant, ao movimento positivista. Como historiador, valorizo muito a memória histórica. Além do Museu Nacional, o Templo da Humanidade não recebe o tratamento impetuoso devido. Em contraste, também pesquisei nos arquivos estaduais, em Mato Grosso, em Brasília. O Museu do Índio, no Rio de Janeiro, tem acervos bem guardados. E, no Arquivo Histórico do Exército, no Palácio Duque de Caxias, fazem um esforço muito cuidadoso para preservar tudo o que tem a ver com Rondon. Ele é um dos grandes heróis militares da história do país. E os militares respeitam muito Rondon, sua coragem, seu exemplo.
Hoje, o Brasil tem um governo com muitos militares no círculo de poder. Qual espaço Rondon teria, se estivesse vivo?
Difícil dizer, porque, na Primeira República, ele trabalhava com todos os presidentes, sem exceção. Dava-se melhor com alguns – Nilo Peçanha, Afonso Pena – do que outros, como Artur Bernardes. Mas a filosofia dele era de servir ao país, sempre em postos que não tinham nada a ver com política partidária. Ele recusou cargos como deputado, senador, governador, ministro, mas trabalhou com todos os presidentes. Sempre. Apesar das relações pessoais tensas com Getúlio Vargas, trabalhou para seu governo. Ele não teria restrições em trabalhar em nenhum governo eleito pelo povo. Agora, no último capítulo do livro, cito uma frase dele, da última entrevista que deu, em 1957, em que diz: “O Exército deveria ser o grande mudo, pronto ao sacrifício pelo bem da Nação, sem, contudo, intervir em mesquinhas questões de politicagem”. Ele disse isso em uma entrevista ao Jornal do Brasil. Referia-se às tentativas de dar um golpe para evitar que Juscelino Kubitschek assumisse a presidência. Ele estava sempre contra o golpismo. Recusou-se a liderar golpes, os criticou e sempre visava a um papel subordinado dos militares ao poder civil.
Tenho 47 anos de convivência com o Brasil. E aquilo (o episódio da quase expulsão após a publicação de reportagem que associava o ex-presidente Lula ao consumo de álcool) durou uma semana. Uma semana comparada com 47 anos não seria a memória dominante dessa convivência. Foi uma semana difícil, amarga. Mas passou. As instituições brasileiras funcionaram como devem funcionar.
Você foi correspondente da revista Newsweek no Brasil durante a ditadura militar. Como era naquele momento traduzir o país para o mundo? Como os americanos viam o Brasil?
De certo modo, o Brasil estava em uma categoria atípica de ditadura militar sul-americana. O regime brasileiro tinha características diferentes de Argentina, Chile, Bolívia e outros países com militares no poder. Era minha tarefa mostrar para o leitor americano como o Brasil era distinto. E como a vida brasileira ia muito além daquela esfera oficial, que o brasileiro vivia de certo modo de costas para o governo. Mostrava que o brasileiro gostava dos prazeres cotidianos, como todos nós. Aquela riqueza incrível da cultura brasileira. Eu destacava, na minha cobertura, o cinema, a música, a literatura, a arte. Queria mostrar como era o cotidiano do Brasil, que o fato de aguentar uma ditadura não queria dizer que o brasileiro pensava 24 horas na política. A vida brasileira tinha outras manifestações. Tentava dar uma visão mais ampla e equilibrada do país.
Você ficou com alguma mágoa do episódio com o ex-presidente Lula?
Tenho, a essa altura, 47 anos de convivência com o Brasil. Visitei o país pela primeira vez em 1972. E aquilo (o episódio da quase expulsão) durou uma semana. Uma semana comparada com 47 anos não seria a memória dominante dessa convivência. Foi uma semana difícil, amarga, porque eu enfrentava a possibilidade de ser expulso e nunca mais poder voltar. Teria sido difícil, porque minha ligação com o Brasil é profunda, é de coração. Tenho parentes, amigos, gosto muito do país e do povo. Mas passou. Em uma semana, tudo foi resolvido. As instituições brasileiras funcionaram como devem funcionar. O Judiciário, a imprensa etc. Foi um momento passageiro em uma convivência longa e feliz.
Você e Lula se encontraram depois?
Não, mas temos amigos em comum. Não vou dizer quem são porque eles não querem queimar relações com o ex-presidente. Alguns deles tentaram organizar um encontro, mas nunca aconteceu.
Você se arrepende de ter escrito aquela reportagem?
Não. Não vejo porquê.
Odeio o governo Trump e tudo o que ele representa. O homem é um grande pilantra, um cafajeste. Além do mais, é incompetente. Fico muito preocupado com o futuro do meu país. Temos eleições no ano que vem e espero que, dessa vez, a vontade popular prevaleça. Porque quem ganhou a eleição no voto popular, em 2016, foi Hillary Clinton, mas uma idiossincrasia do nosso sistema levou Trump à Casa Branca.
Com que frequência você vem ao Brasil?
Sempre, embora a última vez que estive aí tenha sido antes das eleições do ano passado. Estou um pouco desatualizado. Mas vou sempre. Passei meses e meses pesquisando no país, no Rio, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, em Mato Grosso, em Brasília e viajando pelos Estados de Rondônia e Amazonas. Hoje, com a internet, é muito mais fácil manter o conhecimento atualizado. Leio os jornais, as revistas, de vez em quando assisto a programas de TV brasileiros, recebo e-mails de organismos oficiais e não oficiais. Tento me manter em contato com o país. Estou em um grupo de WhatsApp com a família da minha mulher. A internet facilitou muito esse contato permanente.
Como você observa o Brasil hoje, a distância?
Estando longe é difícil saber, porque não sinto a realidade do país. Mas há coisas acontecendo hoje no Brasil que preocupariam Rondon. Como tento destacar no livro, ele foi um dos primeiros ambientalistas. Foi sempre defensor dos direitos dos povos indígenas. Todo mundo comenta que o país está vivendo um retrocesso na política ambientalista e dos direitos indígenas. Isso é preocupante. Agora, o que diferencia o Brasil do século 21 do país na época de Rondon é a presença de ONGs, que não existiam. Elas não têm medo de botar a boca no trombone. Também temos lideranças que não existiriam naquela época. Rondon talvez tenha sido a única voz indígena importante no país naquela época. Hoje em dia, nessa eleição do ano passado, a advogada Joênia Wapichana (de origem indígena) foi eleita deputada em Roraima. Também temos lideranças como Marina Silva. São lideranças populares que não existiam na época de Rondon.
Você está aposentado ou segue trabalhando no The New York Times?
Deixei de lado, propositalmente, o jornalismo diário para mergulhar no projeto sobre Rondon. Você sabe como é difícil, quando está trabalhando como repórter, como é difícil encontrar tempo para fazer outros projetos, escrever um livro. Fiquei tão empolgado com meu próprio projeto Rondon que resolvi deixar de lado o jornalismo diário. Ganhei uma bolsa para fazer pesquisa sobre ele na Biblioteca Pública de Nova York. Isso facilitou a minha transição de jornalista para escritor. Não pretendo voltar ao jornalismo diário. De vez em quando, escrevo sobre o Brasil para revistas aqui, nos EUA, mas vejo um futuro em que continue escrevendo livros.
Como você avalia os EUA e o governo de Donald Trump?
Odeio o governo Trump e tudo o que ele representa. O homem é um grande pilantra, um cafajeste. Além do mais, é incompetente. Fico muito preocupado com o futuro do meu país. Temos eleições no ano que vem e espero que, dessa vez, a vontade popular prevaleça. Porque quem ganhou a eleição no voto popular, em 2016, foi Hillary Clinton, mas uma idiossincrasia do nosso sistema levou Trump à Casa Branca. Para usar uma frase que vocês, brasileiros, costumavam usar na época da ditadura: “Ela ganhou, mas não levou”. Não estou nada satisfeito com a situação no meu país. E mergulhar na pesquisa sobre a vida desse homem tão reto, tão abnegado que se chamava Rondon foi um alívio diante do que está acontecendo nos EUA. Mergulhar na vida de Rondon foi um alívio muito grande diante da loucura atual.