SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Não foi só a admiração por Cândido Mariano da Silva Rondon que levou o jornalista americano Larry Rohter a preparar uma biografia do marechal.
Rohter foi correspondente no Brasil pela revista Newsweek e depois pelo jornal The New York Times. Ficou mais conhecido do público local quando trabalhava neste último veículo de imprensa. Quase foi expulso do país ao publicar uma reportagem sobre o consumo de álcool do então presidente Lula.
Nestes 14 anos em que viveu no Brasil, Rohter se aproximou de familiares da sua mulher, Clotilde, nascida aqui, e fez amigos no país.
Aos olhos do jornalista, a sucessão de crises políticas e econômicas dos últimos anos vinha deixando acabrunhados os seus parentes e amigos brasileiros.
"Pensei no livro como presente para eles, um modo de dizer: 'O Brasil foi capaz de gerar um homem da estatura de Rondon. Então nem tudo está perdido'", conta Rohter em tom bem-humorado.
De fato, esse mato-grossense colecionou proezas fascinantes, como demonstra agora "Rondon", sua recém-lançada biografia.
Em mais de 20 expedições pelo norte do país nas primeiras décadas do século 20, ele redesenhou o mapa da Amazônia. Não teria desempenho tão notável como cartógrafo e engenheiro sem resistência e disciplina. Percorreu mais de 40 mil quilômetros a pé, a cavalo, em canoas.
Foi ainda pesquisador. A Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, conhecida como Comissão Rondon, publicou mais de cem artigos científicos.
Descendente de indígenas, fundou em 1910 o Serviço de Proteção aos Índios. Ao contrário do "índio bom é índio morto", celebrado pelos desbravadores dos Estados Unidos, Rondon deixou outra frase como herança --"morrer se preciso for, matar nunca".
No poema "Pranto Geral dos Índios", Carlos Drummond de Andrade se referiu a ele como o "militar suave".
Durante a Comissão Rondon, como relata Rohter, uma flecha atirada por um nhambiquara atingiu o peito do militar. Só não o feriu porque ficou cravada na bandoleira, a correia onde ele prendia a arma. Além de não reagir, impediu que seus homens atacassem os índios.
Rohter evita, porém, tratar Rondon como homem de conduta irretocável. Lembra, por exemplo, os castigos do oficial aos soldados indisciplinados --punidos por ele mais de uma vez com açoite.
Mais famosa no exterior do que a Comissão Rondon foi a Expedição Científica Roosevelt-Rondon, liderada pelo brasileiro e pelo ex-presidente americano Theodore Roosevelt.
Ao longo de dois meses, entre fevereiro e abril de 1913, percorreram os mais de 1.400 quilômetros do rio da Dúvida (mais tarde rebatizado como rio Roosevelt), que até então não tinha sido mapeado.
Boa parte das informações inéditas ou pouco conhecidas trazidas pela biografia estão nos capítulos dedicados à expedição. Dezenas de livros já descreveram essa aventura, mas quase todos se basearam só nos relatos em inglês de Roosevelt e dos naturalistas que o acompanharam.
Além dessas fontes, Rohter recorreu aos diários e relatórios de Rondon e depoimentos de integrantes da equipe dele.
Dessas visitas a novos baús, sai engrandecida a figura do médico José Antônio Cajazeira, o doutor Cajazeira, pouco mencionado nas obras anteriores.
Roosevelt machucou a perna durante a viagem e, nos dias seguintes, o ferimento resultou numa infecção. Não bastasse isso, os ataques de malária e as doenças estomacais deixaram o ex-presidente americano sem força.
Cajazeira cuidou dele. Num povoado de seringueiros, operou a perna do então presidente, sem anestesia. Não fosse o médico, crê o autor, o americano teria morrido.
Ainda durante a viagem, o canoeiro Julio matou um colega após um desentendimento. Roosevelt quis a pena de morte. Tomando como base as leis brasileiras, Rondon defendeu que o assassino fosse preso. Como Julio se embrenhou pelo mato, não houve nem uma punição nem outra.
"O episódio mostra o abismo cultural entre brasileiros e americanos", diz Rohter. O embate diante do crime já tinha sido exposto em outras obras, mas aparece com nuances na nova biografia.
O autor revela dois objetivos com o livro. Com a versão em inglês, a ser publicada em 2020, quer tirar Rondon das notas de rodapé das obras sobre os grandes exploradores.
Com a edição brasileira, agora nas livrarias, pretende mostrar Rondon além da visão unidimensional do desbravador e defensor dos índios. "Também foi um hábil operador político e se empenhou para evitar que o país entrasse na Segunda Guerra aliado aos nazistas. Seu lugar na história do Brasil deve ser redimensionado", diz Rohter.
DOCUMENTÁRIO TRAZ IMAGENS INÉDITAS DE RONDON E ROOSEVELT
Depois de ser exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 2018, o documentário "Rio da Dúvida" tem estreia nos cinemas prevista para o ano que vem.
Dirigido por Joel Pizzini ("500 Almas", "Mr. Sganzerla"), o filme recria a expedição conduzida por Rondon em 1914. Junto com o sertanista brasileiro, estavam Theodore Roosevelt, que havia sido presidente dos EUA entre 1901 e 1909, e uma equipe de apoio. Buscavam a foz de um rio na Amazônia, o rio da Dúvida.
O documentário é resultado de um ano de pesquisa em arquivos do Brasil e do exterior. Apresenta imagens inéditas, obtidas em instituições como a Biblioteca do Congresso, em Washington.
Rondon - Uma Biografia
Autor: Larry Rohter. Tradução: Cássio de Arantes Leite. Ed. Ob-jetiva. 584 págs. R$ 94,90
Documentário traz imagens inéditas de Rondon e Roosevelt