O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de GaúchaZH em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Em entrevista exclusiva, o tucano fez uma análise do panorama sociopolítico brasileiro e alertou para a necessidade do surgimento de novas lideranças. FHC comentou ainda a possível candidatura de Luciano Huck e de outros "outsiders", e também cobrou autocrítica de seu partido, o PSDB.
Confira abaixo trechos da entrevista de FHC:
A onda de corrupção desvendada pela Operação Lava-Jato atingiu todos os grandes partidos, inclusive o PSDB.
Todos.
Vários líderes do PSDB foram atingidos. O senador Aécio Neves, que quase ganhou a eleição de 2014, foi tragado por essa onda. Foi uma decepção muito grande para o senhor Aécio ter aparecido na Lava-Jato nas circunstâncias em que apareceu?
Decepção foi o modo como ele apareceu. Não é a mesma coisa de outros (titubeia). Ele não estava organizando o roubo de uma estatal, não era dinheiro público. Ele estava pedindo dinheiro emprestado, mas o problema é o modo como fez. Isso foi chocante e teve efeito. Quase todos os partidos, em graus diferentes, foram afetados. O grau maior depende de quem está no governo. Ousaria dizer que houve uma frouxidão em todos os níveis. Mas é variável. Não houve a organização da corrupção em toda parte. Em São Paulo, que eu saiba, nunca houve organização da corrupção pelo PSDB ou pelo governo do Estado. Houve organização da corrupção no Brasil, o que é grave. É uma rede de corrupção. E o que está sendo desmontado é essa rede. Foi isso que chocou e generalizou na percepção. A população não distingue mais o que foi dinheiro para caixa 2, o que dá no mesmo, o que foi para o bolso, o que foi empréstimo, o que foi roubado do povo, o que foi dado para o empresário, o que o empresário roubou. Ficou tudo um bolo só. O que precisamos é de força ética para superar essa crise. Não se supera isso sem uma coisa doída: crime tem de ter castigo. O problema é a impunidade. Veja por exemplo esse mal-estar que está havendo por causa do foro privilegiado. A própria palavra privilegiado não é aceitável numa democracia. Segundo, dá a sensação de que é um biombo para que as pessoas que cometeram crimes não sejam alcançadas.
O senhor não tem a sensação de que está havendo um movimento para abafar a Lava-Jato?
Há mais do que a sensação. Há tentativas, que não têm vencido, mas é preciso ficar atento. Sou muito favorável à Lava-Jato, como um símbolo. Por doído que seja, é um momento pelo qual o Brasil precisa passar. Eu não acho que se deva aceitar uma acusação assim, sem mais. Caberá à Justiça estabelecer qual é o grau de culpa de cada um, se é que há culpa. Temos que ter calma. Sei que o povo não gosta disso, porque leva tempo, mas é preciso ter um filtro, para que haja consequências. Por mais que se queira criticar o que tem acontecido, nunca houve tanta gente presa. Não gosto de ver ninguém preso. Não é o meu estilo, mormente quando conheço alguns. Mas não tem outro jeito. A lei se aplica a todos. A lei deve ser igual para todos. Essa é a pedra de toque da democracia. Ninguém deve ter privilégio.
Na sua opinião o foro deve ser eliminado totalmente ou reduzido?
Reduzido. Se hoje tem 55 mil pessoas protegidas, deixou de ser privilégio. A consequência negativa é que, como tem gente demais, o tribunal não consegue julgar e aumenta a chance de prescrição. O ministro (Luís Roberto) Barroso fez uma proposta razoável. Vamos restringir. O protegido é o mandato, não o mandatário. Se ele, na vida privada, matou a mulher, é foro cível, Justiça comum. Meu Deus, que foro privilegiado é esse? Essas questões vão ser discutidas na eleição.
O que precisamos é de força ética para superar essa crise. Não se supera isso sem uma coisa doída: crime tem de ter castigo.
Em muitas passagens dos Diários da Presidência, percebe-se o seu desconforto com a miudeza da política, com as demandas de varejo dos aliados. De que forma se pode mudar isso para que a política recupere a grandeza que deveria ter?
Chegamos num ponto em que as pessoas acham que tudo é podridão. É natural, quando se faz uma aliança entre partidos, que haja a divisão de poderes O que não é natural é que haja esse clientelismo incessante que me irritava tanto quando era presidente. Num país que tem 28 partidos no Congresso, o que o presidente pode fazer? O partido do presidente nunca teve mais do que 20% das cadeiras. Hoje, os três principais não chegam a 200. E não se somam. São adversários uns dos outros. Se o governo quer aprovar uma lei, tem que fazer aliança. E se o preço da aliança é nomear pessoas, dá essa desmoralização que está aí. Tem que reduzir o número de partidos. A cláusula de barreira foi aprovada no meu governo, mas o Supremo Tribunal Federal vetou. Agora, houve a mudança. É lenta, mas é melhor que tenha isso. Você não pode governar com 28 partidos, fora os 30 que estão na fila para se formar.
É uma questão cultural brasileira?
Não só a questão da nossa cultura, que é uma cultura do toma lá, dá cá. Uma parte das questões é cultural. Só muda com o tempo, a educação, a pregação contínua e a forma de comportamento. A educação não resolve tudo, veja que a Alemanha nazista era educada, mas é uma pré-condição para o bom caminho. Outra coisa importante é que os donos do poder têm de ser mais simples.
O senhor acredita que vai mudar essa relação com as empreiteiras, que está na origem da corrupção desvendada pela Lava-Jato, e que as campanhas deixarão de ser submissas ao império do marketing?
Que podem ser melhores, podem. E devem ser. Primeiro, porque as pessoas estão com medo. Segundo, se os partidos se tornarem melhores. As empreiteiras avançaram na medida em que os partidos deixaram ou até impuseram. A responsabilidade é compartida do setor empresarial e do setor político. Isso tudo está envolvido na cultura da leniência da aceitação. A questão da simplicidade das pessoas que estão no poder é importante. Se você ficar muito condicionado às formalidades, é complicado.
Geraldo Alckmin é o nome de sua preferência no PSDB para concorrer a presidente?
Num país como o nosso, com tanta desigualdade, você ser metido a besta é inaceitável.
Vamos ter uma convenção no dia 9 de dezembro, mas não sei se vamos escolher o nome nesse dia. Provavelmente não será escolhido ainda. No PSDB de hoje, ele é o nome que junta mais forças. Geraldo é simples. Não é a única característica importante dele, mas faz parte ser uma pessoa simples. Não acreditar que você manda, que você é rei. Não quero dar exemplos. Isso é de cada pessoa. Vou citar um exemplo de outro país: Bill Clinton. Se Clinton entra aqui nesta sala, você fica hipnotizada por ele. Almoçamos com ele há pouco tempo, nos Estados Unidos. É completamente simples. Easy going. Um exemplo oposto, de uma pessoa muito formal: François Mitterrand. Parecia um Buda. Para que isso? O político precisa ser mais humano. Num país como o nosso, com tanta desigualdade, você ser metido a besta é inaceitável.
Há poucos dias, o senhor escreveu um artigo alertando para o risco de peemedebização do PSDB. A saída do governo Temer é decisiva para livrar o partido da imagem de que está sempre no muro e de que os ministros estão agarrados aos cargos?
Não acho que a questão central seja entrar ou sair do governo. O ministro das Cidades já saiu. O ministro do Exterior, assim como o da Defesa, são de Estado. O PPS saiu do governo e Raul Jungmann ficou. Pode ser que o Aloysio (Nunes Ferreira) tenha de sair para concorrer. Não é essa a questão central. Central é o que vai fazer daqui para a frente. Se o PSDB aspira ter candidato, não pode estar amarrado a outro partido. O governo é do PMDB, que deve ter seu candidato. Mas podemos discutir alianças.
Aliança com o PMDB?
A estratégia do PMDB sempre foi ter uma grande bancada. Sempre se fragmentou e sempre procurou ter uma grande bancada. Jarbas Vasconcellos (ex-governador de Pernambuco) declarou que apoia Alckmin. Vai dizer que não? Pelo contrário. Ele é um cara de valor. O PSDB, primeiro, precisa ganhar confiança própria. O que sou? O que proponho? Quais são os interesses em jogo? Tem de haver sinceridade. O PSDB precisa voltar a ter uma linguagem coerente com o que ele faz. Voltar a fazer o que diz. Cuidar do crescimento da economia, do combate à desigualdade, da educação, da democracia. Precisa valorizar as instituições oferecer o que o povo precisa: saúde, educação, habitação. Coisas simples. Tudo isso na ótica de um comportamento decente. Hoje, o objetivo mais importante do nosso país é ter uma sociedade decente. Não só que não rouba, mas uma sociedade em que as pessoas tenham maior igualdade, chances de subir na vida. Para isso, precisa ter crescimento e expressar que o Brasil faz parte de um mundo que está mudando. O que vamos fazer? Vamos olhar para os nossos vizinhos e dar as mãos? Vamos entender que a China e os Estados Unidos estão num jogo de poder e que nós podemos não optar e tirar vantagem da relação com os dois? Vamos afirmar que somos democratas e que não acreditamos em aventureiro? O candidato do PSDB deve dizer isso com clareza e simplicidade e, sobretudo, inspirar confiança. Hoje, a crise maior, ao lado da econômica, é de confiança. Tem que simbolizar: "esse cara é sério". É isso.
Confira a íntegra da entrevista, dividida em quatro partes:
PARTE 1 - Huck e "outsiders" são "sinal de ausência de política"
PARTE 2 - "PSDB precisa voltar a fazer o que diz"
PARTE 3 - "Precisamos mais do que nunca de visão democrática"
PARTE 4 - "A sociedade precisa de líderes, de pontos de referência"