O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de GaúchaZH em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Em entrevista exclusiva, o tucano fez uma análise do panorama sociopolítico brasileiro e alertou para a necessidade do surgimento de novas lideranças. FHC comentou ainda a possível candidatura de Luciano Huck e de outros "outsiders", e também cobrou autocrítica de seu partido, o PSDB.
Confira abaixo trechos da entrevista de FHC:
A descrença da população na política favorece o surgimento de um "outsider"? Luciano Huck, por exemplo, tem experiência de televisão e se comunica bem, mas há quem diga, como o senador Aécio Neves, que o surgimento do nome dele é indicador da falência da política.
Huck é meu amigo. Portanto, minha avaliação é desviada, no bom sentido. Sou amigo do Huck e da família dele. Ele tem essas características. A questão é saber se isso passa para a política? Ele está acostumado a falar com a dona Maria, como ele diz, e a falar sozinho. Não está no debate político. Cogita-se um nome de fora. Às vezes, falam de um juiz, como Sergio Moro, Joaquim Barbosa. É sinal de ausência de política. Tenho muito respeito pelos juízes, como tenho pelo Huck. Tenho respeito pelo Sergio Moro. Acho equilibrado, não se apresenta como salvador de nada. Mas é juiz. Cada um tem as suas características. Eu era professor e tive muita dificuldade para falar como candidato. No meu tempo, havia uma certa distância. Na vida pública, não é assim. Você, como professor, não está acostumado a pegar nos outros, nem a ser pegado. Na vida pública, é o contrário, uma entrega corpórea.
O senhor teve até de comer buchada de bode.
Comi. Mas eu gosto de buchada de bode. Não esqueça que a minha mãe nasceu em Manaus e é de família alagoana. Tenho um lado buchada de bode (risos). Uma vez, eu estava com (o senador) Teotônio Vilela lá em Alagoas e veio uma cavalhada. Eu disse: vou montar num cavalo. O Teo se assustou, mas sei montar a cavalo. Montei e botei um chapéu de boiadeiro. Ah, aquilo saiu nos jornais aqui no sul, gozando. Não fiz aquilo por farsa. Sei montar a cavalo. Monto mal, mas monto.
Você tem de dar sinais concretos de que você é igual. Se não der sinais de que é igual, é difícil conversar com a população.
Você tem de dar sinais concretos de que você é igual. Se não der sinais de que é igual, é difícil conversar com a população. Ela só ouve uma pessoa que ela sente que está do lado dela. No Brasil, você tem de beijar e se deixar beijar. Quem não está habituado com a vida política não vai de repente entrar nela e se dar bem. A pessoa que vi que mais entendeu o que estava havendo no Brasil, isso na década de 50, foi (o ex-presidente) Jânio Quadros. Ele percebeu que a comunicação de massa como estava se delineando era simbólica. Andava com uma vassourinha para limpar a corrupção e uma gaiola com um rato dentro. Ele não precisava falar nada. Todo mundo entendia. Na universidade, estávamos todos contra. Achávamos ridículo. Isso pode ser sincero ou não. É bom que seja sincero, tem de tocar numa corda no coração pessoa. Política não é só razão, é emoção também.
Isso que o prefeito João Doria faz hoje não é o mesmo que Jânio fazia, em uma versão mais moderna?
É um pouco diferente. Não sei julgar o Doria, nem quero. Me dou bem com ele. Mas ele usa a linguagem de computação, de redes. É muito hábil. O tempo todo está se comunicando. Não sei se acertou o ponto. Isso as pesquisas é que vão dizer mais adiante. Mas ele tem essa contemporaneidade. O Chacrinha já dizia que quem não se comunica, se trumbica.
As pesquisas mostram que a popularidade de Doria já caiu um pouco. O senhor mesmo disse, com outras palavras, que Doria deveria governar menos pelo Facebook.
Não foi bem assim. Alguém me perguntou e disse o que digo sempre: hoje em dia todo mundo tem um computador à mão (pega o telefone celular de uma mesinha lateral), mas não sabe usar. Doria sabe usar. Quando alguém falou isso, eu disse: tem gente que sabe usar. Aí disseram que estava lançando ele para qualquer coisa. Disse: "Não, primeiro ele tem que governar". Isso foi lido como se estivesse fazendo uma crítica.
Sim, foi lido como uma crítica. Não era?
Não sabemos ainda qual é o efeito de tudo isso. Estamos no Brasil tateando nessa matéria, como o Jânio tateou. Numa certa altura, o Jânio ganhou usando esses símbolos. Pega o Jânio e pega o (Carlos) Lacerda. O Lacerda era o orador convencional. Ele fazia o discurso. Valia pela palavra, não pelo símbolo. No mundo de hoje, isso é meio palavra e meio símbolo. Não sei qual vai ser o resultado.
Não é isso que faz Bolsonaro quando se fixa numa ideia só, a da segurança da ordem, com um discurso de que tudo se resolve com as pessoas andando armadas, como se fosse essa solução para o problema da segurança?
Não sei se isso vai ser popular. Nos Estados Unidos seria. Ele vai ter que entrar em outros temas. E eu não sei o que ele pensa sobre outros temas. Agora, você tocou num ponto que é central no Brasil de hoje, que é o da segurança. Um dos problemas dos políticos tradicionais democratas brasileiros é que, por causa da ditadura militar, ficou a ideia de que segurança é coisa da direita. Ora, hoje, segurança é coisa do cidadão. As pessoas têm medo. E têm razão de ter medo. Os ricos não têm esse problema. Eles têm guarda-costas, andam de automóvel blindado, mas o pobre, não. A violência maior não é nos bairros ricos, é nos bairros pobres. Em toda parte, há medo. Quem quiser ganhar apoio da população, tem que entrar nessa questão (da segurança).
Ficou a ideia de que segurança é coisa da direita. Ora, hoje, segurança é coisa do cidadão. As pessoas têm medo.
A segurança vai ser a pauta central dessa campanha ou é a economia?
Sempre a pauta econômica é um fundamento importante. Você estar com o bolso vazio ou com o bolso cheio faz a diferença. É aquela história do assessor do (ex-presidente americano Bill) Clinton: "É a economia, idiota". É, é a economia. A situação do Brasil está melhorando, mas o povo não sente, porque não chegou ainda no bolso. O número de empregos aumentou. Criaram-se mais emprego do que se fecharam. Mas você não sente, porque há 12 milhões de pessoas desempregadas. É uma gota d'agua.
A inflação é a mesma coisa: caiu, mas as pessoas não sentem.
Exatamente. Caiu bastante. Mas a pessoa não sente. A renda dos mais pobres deve ter melhorado, pelas estatísticas, mas estatística não é a vida. Você leva tempo para sentir. Esse tema vai estar sempre presente, mas vem com outro: não dá para manter essa desigualdade que temos no Brasil. É inaceitável. Você não resolve a desigualdade sem crescimento da economia. Só dividir leva todo mundo para a pobreza. Se você crescer e dividir, melhora. Tem, de dar a sensação de que está melhorando. Quem for falar na política tem que prometer o que vai fazer e fazer. Falta confiança para os empresários. O Brasil tem uma carência de infraestrutura extraordinária. Tem muito dinheiro sobrando no mundo. Por que não vem para cá? Porque não confiam no amanhã. Se você tiver alguém que seja capaz de mostrar o caminho e as pessoas acreditarem, haverá investimento. Economia, sim, mas a probidade vai ser tema, a ética. Porque a roubalheira foi muito grande. E pior. Corrupção organizada para financiar a política. Isso é inaceitável, e a população descobriu isso.
Confira a íntegra da entrevista, dividida em quatro partes:
PARTE 1 - Huck e "outsiders" são "sinal de ausência de política"
PARTE 2 - "PSDB precisa voltar a fazer o que diz"
PARTE 3 - "Precisamos mais do que nunca de visão democrática"
PARTE 4 - "A sociedade precisa de líderes, de pontos de referência"