O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de GaúchaZH em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Em entrevista exclusiva, o tucano fez uma análise do panorama sociopolítico brasileiro e alertou para a necessidade do surgimento de novas lideranças. FHC comentou ainda a possível candidatura de Luciano Huck e de outros "outsiders", e também cobrou autocrítica de seu partido, o PSDB.
Confira abaixo trechos da entrevista de FHC:
O senhor está preocupado com o futuro do Brasil?
Sem dúvida, estou. O mundo está mudando muito. Não é só a questão da globalização e as confusões advindas daí, mas o próprio equilíbrio de poder, com a ascensão da China, o retraimento dos Estados Unidos e a fragmentação da Europa. O Brasil está marcando passo no momento em que deveria estar avançando.
Essa onda de descrédito na política pode levar o eleitor brasileiro a jogar o país numa aventura?
Esse descrédito não é só aqui. Tenho estado em várias reuniões sobre a crise da democracia representativa no mundo ocidental. Estive em Lisboa, em Paris e, agora, nos Estados Unidos, conversando bastante sobre esse tema. Por quê? Porque houve uma mudança muito grande nas sociedades em razão da dinâmica de classes, da mobilidade social muito intensa, e as pessoas ficaram um pouco soltas diante das instituições. As instituições não correspondem mais à vida das pessoas. Isso vale para os partidos e para os parlamentos. Afeta o conjunto da vida política no mundo ocidental, em grau maior ou menor, dependendo da situação do país. Temos assistido a fatos graves. Por exemplo, Donald Trump se elegeu contra todos os setores estabelecidos da sociedade americana. Na Inglaterra, ganhou o Brexit, a decisão de sair da Comunidade Europeia. Isso com o apoio de setores tradicionalmente ligados a movimentos de esquerda, a partidos de trabalhadores. Na França, ganhou Emmanuel Macron, com uma visão diferente, mas teve contra ele a Marine Le Pen, de extrema-direita, com apoio de antigos comunistas. O mundo político está todo em ebulição.
Como o sociólogo Fernando Henrique explica esse fenômeno crescente de aumento do conservadorismo no Brasil?
As instituições não correspondem mais à vida das pessoas. Isso vale para os partidos e para os parlamentos.
Também não é só aqui. Trump se elegeu com uma linguagem conservadora. Qual é o slogan dele? Retornar a América ao que foi no passado, com uma visão contrária a imigrantes. Em boa parte, a reação inglesa é contra a imigração também. Até no Chile, a imigração foi tema da campanha eleitoral, por causa dos haitianos. É uma onda de medo. E o medo deriva de mudanças muito rápidas na estrutura de produção, das novas tecnologias. As pessoas não têm conhecimento, querem participar, mas não sabem muito bem como. No Brasil, estamos assistindo a isso em certos setores, mas é menos forte do que em outros países.
Aqui, é um conservadorismo mais de comportamento.
Há um pensamento político-social mais do que conservador, reacionário. Os nossos conservadores eram mais atrasados. Os reacionários de hoje têm um pensamento que vai contra o modo como o mundo se organiza. Misturam-se aos conservadores e isso atrai a juventude.
Isso lhe surpreende?
Surpreende, sim, mas se explica como consequência da falência dos setores progressistas. Houve tanta aposta no PT, por exemplo, e depois deu no que deu. Isso abre espaço para a desilusão e, quem sabe, para novas ilusões que, em vez de brotarem à esquerda, brotam à direita. Vê-se que é um conservadorismo cultural, de forma de comportamento. Essa questão de museu, de exposição de nus, deu uma reação muito grande. Vieram como se fosse uma coisa para dissolver a família, e a família é uma coisa muito entrincheirada na cultura brasileira.
Nessa onda, pessoas que defendem a liberdade de expressão foram rotuladas até de pedófilas.
Esse é o perigo. Você mistura a defesa da liberdade política, social, cívica, como se fosse coisa de pessoas fora da regra, quando na verdade deve ser a regra. Estamos precisando de uma pedagogia democrática no Brasil. Parece que a onda passou. A onda agora é outra, que não é democrática. E precisamos mais do que nunca de visão democrática, ainda mais num país que tem essa diversidade enorme. Se essa onda pega, dá em briga sectária, que não devemos acalentar.
São as redes sociais que estimulam as visões extremadas?
A rede social cria tribos. Pessoas que pensam da mesma forma. Dá uma espécie de junção de segmentos. A rede social, ao mesmo tempo em que abre espaço à participação, forma um tipo novo de participação, que ocorre à distância, pessoas que estão ligadas sem estar presentes. Cria uma dificuldade de entender quem está ligado com quem e para quê. Quando as pessoas se manifestam nas redes, é para protestar.
O senhor concorda com a premissa de que a rede semeia o ódio, mas não o constrói?
Exatamente. Na mídia convencional, bem ou mal tem curadoria e responsabilização. Você seleciona a informação e assina embaixo. O editor-chefe é responsável, ou o repórter que assinou. Na rede, não. Você põe na rede e fica lá. Pode colocar qualquer coisa. Se você apertar o botão com o meu nome, vai ver que tem uma porção de mentiras lá. Fazer o que diante dessas mentiras? Não tem muito o que fazer, a não ser manter-se como você é, com a esperança de que, com o tempo, o seu modo de ser transpareça mais fortemente do que aquilo que seus adversários puseram. Ainda estamos em fase de adaptação a esse mundo moderno. Vimos agora nos Estados Unidos que, com os meios eletrônicos, é possível que um país interfira na eleição de outro.
O senhor teme que aconteça no Brasil uma interferência indevida, capaz de influenciar no resultado da eleição?
Já houve. Há robôs que podem estar na Europa, nos Estados Unidos, na África, e ficam influenciando aqui. É preciso ter antídotos contra isso. Há algum tempo, alguém foi verificar e havia mais de 30 perfis falsos com meu nome. "Face fakes". Não necessariamente contra, mas não era eu. As pessoas não sabem. É um mundo de previsão difícil. Não é só aqui. É em toda parte. Onde não tem isso? Só nos países autoritários, onde eles controlam a rede, e não há representação pelo voto. É claro que temos de olhar para a frente. As pessoas vão ter de se adaptar a esse sistema. Verificar que nem tudo o que aparece é verdadeiro, buscar forma de reação quando for falso. As instituições terão de se amoldar a tudo isso. Não tenho uma visão pessimista da rede. Pelo contrário, a rede permite o engajamento, e isso é positivo.
Os reacionários de hoje têm um pensamento que vai contra o modo como o mundo se organiza. Misturam-se aos conservadores e isso atrai a juventude.
Como as redes podem impactar no resultado da eleição?
Veja os próprios partidos. Quem vai se inscrever num partido, a não ser cartorialmente? As pessoas que se interessam não são muitas. Têm de participar de reunião do diretório para discutir pequenas questões internas. Os partidos giram em torno de pequenos poderes. Mesmo os partidos que são mobilizadores não têm mais o debate vivo. Hoje, só são mobilizadores para manipular. Se os partidos quiserem sobreviver, têm de ir para a rede.
De certa forma, é isso que o Partido Novo está fazendo.
Sim, a Rede também tentou, mas não conseguiu. No futuro, os partidos terão de se articular dentro da rede. É difícil sair da casa para ir a uma reunião. Temos de nos habituar a esse mundo novo. Vamos ver o que vai acontecer na próxima eleição, qual será a influência relativa das redes, do jornal, do rádio e da TV. O veículo escrito ainda é o formador de opinião. Dom Pedro II já dizia que existe a opinião pública e a opinião nacional. A opinião pública continua sendo formada basicamente pelos jornais e, eventualmente, pela TV. Agora, a opinião nacional ninguém sabe bem como se forma. Até bem pouco tempo, a gente sabia que rádio e TV tinham efeito. Agora, devem ter também, mas vai ter um certo contrapeso da rede.
Confira a íntegra da entrevista, dividida em quatro partes:
PARTE 1 - Huck e "outsiders" são "sinal de ausência de política"
PARTE 2 - "PSDB precisa voltar a fazer o que diz"
PARTE 3 - "Precisamos mais do que nunca de visão democrática"
PARTE 4 - "A sociedade precisa de líderes, de pontos de referência"