O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu a reportagem de GaúchaZH em seu apartamento no bairro de Higienópolis, em São Paulo. Em entrevista exclusiva, o tucano fez uma análise do panorama sociopolítico brasileiro e alertou para a necessidade do surgimento de novas lideranças. FHC comentou ainda a possível candidatura de Luciano Huck e de outros "outsiders", e também cobrou autocrítica de seu partido, o PSDB.
Confira abaixo trechos da entrevista de FHC:
É curioso constatar que nunca se discutiu tanto política como agora, mas que as notícias falsas são as mais compartilhadas?
É que as falsas produzem sensação. Segundo, é muita notícia e, como não tem curadoria, você se perturba com tanta informação. Claro que a sensibilidade das pessoas vai se ajustando. Precisamos ver qual será o efeito disso sobre as pesquisas de opinião. No Chile, as pesquisas indicavam uma coisa e o resultado, em percentuais, foi bem diferente. O Chile é um país pequeno, as pesquisas são benfeitas. O resultado diferente do previsto talvez seja consequência desse novo modelo de as pessoas se manifestarem.
Existem movimentos subterrâneos que as pesquisas não captam?
Pode acontecer isso. No nosso caso, talvez a população esteja bastante motivada contra a política, por causa da corrupção. Como destapou a panela e as pessoas se assustaram, isso levou a uma certa desilusão. Houve uma espécie de prestigiamento da Justiça, da polícia e dos procuradores. Agora, estamos em um momento mais confuso. Começa a haver dúvidas. O novo procurador-geral critica o antigo, o novo diretor da Polícia Federal critica o procurador e a própria polícia. É um estado de fragmentação que corresponde à fragmentação real da sociedade. A sociedade precisa de líderes, de pontos de referência.
O senhor toca em um ponto importante: a sociedade precisa de líderes, mas busca um salvador da pátria. Isso é perigoso?
Esse é o risco. A sociedade precisa de pontos de referência, mas, se for alguém que empalme tudo em nome de um futuro glorioso, é sempre arriscado.
Se não aparecer quem proponha algo concreto na Terra, qualquer um que prometa o paraíso vai levar.
Como se explica o resultado das pesquisas de hoje, que mostram Lula em primeiro lugar e Jair Bolsonaro em segundo, mesmo sem dizer absolutamente nada de concreto do que faria se fosse eleito?
Isso é um pouco antes da hora. A população ainda não está envolvida nesse debate. Não houve nenhum confronto político, qual é a ideia que fulano tem sobre tal coisa. Mas é curioso. De alguma maneira, faz parte desse mundo em que estamos vivendo, criar o contraditório. Quando há uma semente do contraditório, você rega, põe água, para essa contradição subir. Inconscientemente, todos fazemos isso. A mídia também. Cria fantasmas. Mas esse fantasma pode tomar corpo se não houver outros que se ponham na lista e apresentem sua visão.
Como se combate esses fantasmas?
Esses dias, eu estava prestando atenção em um programa de televisão, desses comandados por um grupo religioso de orientação evangélica, em um templo importante, muita gente. O pastor dizia: "Venham para cá, convertam-se, manifestem a sua crença, que o Senhor vai dar o que lhe corresponde. Você vai ter êxito na vida". E as pessoas vinham dar depoimentos sobre o que conquistaram depois de terem aderido àquela crença. Veja que ele não oferece a glória no céu, oferece o sucesso na Terra. A política não é muito diferente disso. Lula já estava aí, e a gente sabe o que ele faria. Mais ou menos, porque ele muda. Por enquanto, a gente não sabe o que Bolsonaro vai propor. Se não aparecer quem proponha algo concreto na Terra, qualquer um que prometa o paraíso vai levar. As pessoas querem melhorar. Não sei se os nossos líderes políticos percebem que é preciso não só palavras, mas demonstrar algum caminho, para que a pessoa se sinta tocada. Não pode dizer apenas: "Sou a favor da democracia". O que é isso?
Aliás, a democracia é colocada em xeque por muitas pessoas. Com frequência, se ouve dizer que bom mesmo era no tempo dos militares, inclusive por quem não viveu aquela época.
Os polos têm sempre vantagem. É mais difícil organizar o centro.
Claro. E porque não viveu, acha fantástico. O passado você refaz. Pode mitificá-lo. Isso não dispensa o que eu disse há pouco. Em qualquer situação, na política, as ideias valem quando são encarnadas por pessoas. Ideia por ideia é na academia. Aí você pode debater o conceito. Fora disso, é você ser símbolo de um sinal de tal coisa. Quem é símbolo de um sinal, negativo ou positivo, segundo o valor de cada um, tem vantagem. Por isso, os polos têm sempre vantagem. É mais difícil organizar o centro. O centro é mais numeroso, mas é preciso que o centro se manifeste concretamente. E não pode ser um centrão, onde cabe tudo. Nunca vou esquecer que, quando fui candidato, o slogan da minha campanha era "As pessoas em primeiro lugar". Isso vem do americano, "people first". Tem de colocar a pessoa em primeiro lugar. Tem de falar para que quem está ouvindo pense: "está falando comigo".
Confira a íntegra da entrevista, dividida em quatro partes:
PARTE 1 - Huck e "outsiders" são "sinal de ausência de política"
PARTE 2 - "PSDB precisa voltar a fazer o que diz"
PARTE 3 - "Precisamos mais do que nunca de visão democrática"
PARTE 4 - "A sociedade precisa de líderes, de pontos de referência"