Em meados de 2004, a juíza Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira Rebout participava de uma solenidade no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul quando foi cumprimentada pelo vereador Raul Carrion (PCdoB), um vizinho de infância no bairro Moinhos de Vento, que mais tarde se tornou deputado.
— Ana Lúcia, que grande liderança é essa menina, a Manuela. Vai se eleger vereadora — elogiou o político.
Manuela Pinto Vieira D’Ávila morava com a mãe e já estava filiada há quase seis anos, mas jamais havia conversado em casa sobre disputar algum cargo eletivo ou fazer da política uma atividade perene. A novidade não chegou a ser uma surpresa para Ana Lúcia, acostumada a ver a filha exercendo uma liderança natural entre os colegas do Pastor Dohms, onde cursou o Ensino Médio, e na faculdade de Jornalismo da PUCRS.
O instinto materno, contudo, temia uma frustração nas urnas. Semanas depois, Ana Lúcia postou-se na frente de uma galeteria da Avenida José de Alencar, na noite de lançamento da candidatura, angustiada ante a possibilidade de os convidados não aparecerem. No dia da eleição, ficou contando todas as pessoas com quem Manuela se relacionava, dos conhecidos aos familiares, passando por amigos e colegas, para se certificar de que alcançaria os 200 votos que projetava para a filha. Foi quando o telefone tocou.
— Era um irmão meu, ligando de São Paulo: “Parabéns! A Manuela está liderando!” — recorda.
Com 9.498 votos, Manuela foi, empatada com Maria Celeste (PT), a mulher mais votada naquela eleição — a oitava colocada no cômputo geral. Começava ali a trajetória que neste domingo, 16 anos e oito eleições depois, coloca a jornalista e mestre em Políticas Públicas no segundo turno da disputa pela prefeitura da Capital.
Filha de Ana Lúcia com o engenheiro e professor universitário Alfredo Luís Mendes D’Ávila, Manuela tem outros quatro irmãos. Na infância, morou em diversas cidades do Interior, a cada nova comarca assumida pela mãe. O retorno a sua Porto Alegre natal se deu em 1995, aos 14 anos. À época, Manuela pesava 96 quilos e disfarçava o incômodo com o próprio peso assumindo um protagonismo na condução das brincadeiras e traquinagens entre os colegas.
Certa feita, após combinação na hora do recreio, os 36 alunos da turma fugiram do colégio antes de uma prova de Português. Depois de se esconderem num bar, foram até uma agência dos Correios para enviar um telegrama à direção avisando que estavam bem.
Aos 16 anos, Manuela passou para Jornalismo na PUCRS e Ciências Sociais na UFRGS. Tudo mudou. Disposta a emagrecer, copiou uma dieta de uma das irmãs e mergulhou de vez na militância estudantil. De presidente do diretório acadêmico, passou a dirigente da União Nacional dos Estudantes e militante da União da Juventude Socialista, sua porta de entrada no PCdoB.
— Manuela chegou trazendo um carisma enorme. Na campanha ficou nítido que ela tinha muita força, uma linguagem inovadora e sabia lidar com a internet. Era o tempo do Orkut e ela dominava aquilo — conta Carrion.
Nas ruas e nas redes, o slogan “E aí, beleza?” catapultou Manuela. A campanha eletrizou a juventude de esquerda e logo se tornou prioridade para o partido. Ao debutar no parlamento aos 23 anos, a vereadora mais jovem da Capital assumiu o mandato já como líder da bancada. Defendeu pautas caras ao PCdoB, como a meia-entrada estudantil, mas também votou a favor de parcerias público-privadas, ainda hoje um dogma numa partido afeito ao controle do Estado sobre os serviços públicos. Dois anos depois, concorreu à Câmara dos Deputados.
Se havia alguma dúvida de que se tratava de um novo fenômeno da política gaúcha, as urnas desfizeram qualquer suspeita. Com 271.939 votos, Manuela foi a mais votada entre os 31 eleitos. Sua chegada em Brasília causou um frisson na imprensa. Chamada de “musa do Congresso” pelos jornalistas, rejeitava o rótulo a cada entrevista, mas não conseguiu escapar de uma cobertura jornalística machista, quase sempre condicionada a sua juventude e beleza, sobretudo após assumir o namoro com o também deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP).
Era o início de 2008 e logo Manuela passou a se dedicar à campanha à prefeitura de Porto Alegre. A disputa tinha como ingrediente especial a presença de três mulheres, todas de esquerda: Manuela, Maria do Rosário (PT) e Luciana Genro (PSOL). Embora fossem colegas na bancada gaúcha, comungassem do mesmo ideário de esquerda e mantivessem uma relação amistosa, a caçula do trio abriu a artilharia já na pré-campanha.
— Rosário representa 16 anos de uma administração que se estagnou por um marasmo administrativo e por falta de iniciativas inovadoras. Não representa andar para a frente. Já Luciana tem uma tradição de criar conflitos, e não soluções. Desconheço o projeto político do PSOL para Porto Alegre — disse Manuela a Zero Hora em março de 2008.
A tensão seguiu durante a disputa, com Manuela sendo impedida pela Justiça Eleitoral, após representação do PT, de usar um depoimento de apoio do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em sua propaganda de rádio e TV.
Tendo como vice o deputado estadual Berfran Rosado, do PPS do ex-governador Antonio Britto, um adversário figadal da esquerda gaúcha, a chapa obteve 121 mil votos e ficou em terceiro lugar. No segundo turno, Manuela apoiou Rosário.
A consagração viria em 2010, quando concorreu à reeleição e fez 482.590 votos, ainda hoje recorde absoluto na bancada federal gaúcha. Manuela quase virou ministra dos Esportes de Dilma Rousseff, mas a direção nacional do partido decidiu preservá-la para uma nova corrida à prefeitura da Capital, dois anos depois.
Mais uma vez, Manuela demonstrou pragmatismo eleitoral e se aliou ao PSD de Gilberto Kassab, tendo como vice o vereador Nelcir Tessaro e na senadora Ana Amélia Lemos (PP), porta-voz do agronegócio, uma das principais apoiadoras. Não deu certo. O eleitor reelegeu José Fortunati (PDT) no primeiro turno com 65% dos votos — por ironia, o 65 que representava Manuela na urna eletrônica.
Aquela eleição representou um fim de ciclo para Manuela. Pouco tempo depois, ela recebeu uma mensagem no celular. No texto, enviado de um aeroporto qualquer do país em meio à turnê do projeto Pouca Vogal, o músico Duca Leindecker se dizia fã da deputada e elogiava seu espírito combativo.
— Eu estava solteiro, mas não foi um xaveco. Eu sou do partido do elogio, acho que as pessoas precisam ser elogiadas. Já tem tanta briga e xingamento. Daí veio uma resposta bem formal, de deputada mesmo. Só mais tarde veio uma resposta descontraída e a gente passou a conversar. Ficamos uns dois meses nos falando apenas por mensagens. Nos apaixonamos pela internet — conta o artista.
Do primeiro encontro com Duca, um café e uma caminhada pelo Moinhos de Vento, à decisão de voltar a viver em Porto Alegre, passaram-se poucos meses. Em setembro de 2013, ela anunciou que não iria mais concorrer a deputada federal. “Acredito que a política deve ser espaço de renovação, e que meu Estado e a minha cidade poderão contar ainda mais comigo se estiver mais próxima do que estou hoje”, escreveu nas redes sociais.
Manuela não estava abandonando a política, mas queria voltar para casa, viver seu grande amor e ser mãe. Em 2014, concorreu a deputada estadual e de novo foi a mais votada, com 222 mil votos. Pouco depois da eleição, engravidou. Laura nasceu em agosto de 2015, nove dias após o aniversário da mãe. Mesmo liderando as pesquisas para a disputa pela prefeitura, não quis concorrer de novo em 2016 para se dedicar à maternidade.
Voltou à arena eleitoral em 2018, na mais ambiciosa empreitada de sua trajetória: concorrer à Presidência da República. Rodou o país em pré-campanha, mas, a 10 dias do registro da candidatura, enfrentou uma operação para deixar a corrida como cabeça de chapa. De uma sala com 15 metros quadrados onde cumpria pena na Polícia Federal de Curitiba, Lula, inelegível, forçava o PCdoB a tirá-la da corrida presidencial com a promessa de ser vice na chapa petista. Por 37 dias, ela esperou uma definição da Justiça Eleitoral sobre a situação de Lula para só então ser confirmada como vice de Fernando Haddad (PT).
Mesmo decepcionada com a direção do partido, Manuela mergulhou na campanha, tornando-se alvo de uma enxurrada de fake news. Passada a derrota eleitoral, fundou um instituto dedicado ao combate à desinformação, escreveu três livros e envolveu-se no polêmico vazamento de informações da Operação Lava-Jato, quando intermediou o contato entre jornalistas do The Intercept Brasil com o hacker que acessou mensagens da força-tarefa.
Sem mandato, passou a aproveitar mais os momentos em família, seja velejando no Guaíba e saltando de paraquedas com Duca, ou se divertindo com Laura e o enteado, Guilherme. Mas bastou outra eleição para os olhos brilharem de novo pela paixão política. No fim de tarde do último domingo (22), Manuela irrompia pelas mesas de bar da Cidade Baixa, panfletando com entusiasmo juvenil:
— E aí, beleza?