O mote para alavancar a candidatura de Fernando Haddad à Presidência garantia: “Haddad é Lula”. Do ponto de vista do marketing político, o slogan foi um sucesso, catapultando o ex-prefeito de São Paulo para o segundo turno da eleição. É um feito notável, porque a pessoa escolhida pelo PT para ser Lula, no impedimento do próprio, dificilmente poderia ser mais diferente do que o ex-presidente.
Um veio do sertão miserável do Nordeste, o outro, da classe média da maior metrópole do país. Um é de origem católica, o outro, da Igreja Ortodoxa. A família de Lula está no Brasil há sabe-se lá quantas gerações, a de Haddad recém-havia imigrado do Líbano quando ele nasceu. O primeiro tem pouca escolaridade e comete tropeços no português, mas é um perito em se comunicar com as massas.
O segundo é advogado, mestre em economia e doutor em filosofia. Parece uma gramática ambulante, mas usa com frequência um linguajar de difícil compreensão para o eleitor mais humilde. Um trabalhou no chão de fábrica e é movido pela intuição, o outro, professor universitário, navega com mais desenvoltura no universo da teorização acadêmica. Lula é um político nato, habilidoso, carismático, com luz própria. Haddad, um típico tecnocrata, de personalidade pouco exuberante, a quem pespegou-se o apelido de “poste” sem qualquer dificuldade.
A ideia de que Haddad é Lula pode ter funcionado, ao menos em parte, porque pouca gente sabia quem era Haddad. Até um mês antes do primeiro turno, quando ele deixou a condição de vice de mentirinha e foi lançado oficialmente candidato, a maioria dos brasileiros não tinha ouvido falar dele ou dispunha apenas de uma vaga ideia sobre de quem se tratava. Reportagens mostraram que, no sertão pernambucano onde Lula é rei, eleitores referiam-se ao presidenciável petista como Adraike, Adauto, Andrade, Alade ou Radarde.
Foi a partir do horário eleitoral gratuito que o brasileiro começou a ter uma noção mais aproximada sobre quem era o candidato. Nos programas de TV e rádio, Haddad apresentou como grande referência o avô paterno, Cury Habib Haddad, sacerdote da Igreja Ortodoxa Grega, do qual sempre carrega uma foto na carteira.
Essa referência abriu uma porta para a história familiar do petista. O pai do candidato, Khalil Haddad, era um cristão do Líbano que emigrou para o Brasil em 1947, aos 24 anos. Em São Paulo, estabeleceu-se como atacadista de tecidos e casou com uma filha de libaneses, Norma Teresa Goussain. Fernando, nascido em 1963, é o segundo dos três filhos do casal.
Seu envolvimento com a política remonta à militância estudantil, na fase final da ditadura. À época, ele dividia-se entre o trabalho no comércio do pai, as aulas de Direito na tradicional faculdade do Largo São Francisco, as leituras marxistas e a participação no centro acadêmico do curso, do qual foi eleito tesoureiro e depois presidente, em 1984. Já filiado ao PT, participou naquele ano da Campanha das Diretas, que exigia a volta das eleições para presidente. Era chamado de Dandão pelos colegas.
Apesar de ter se formado em Direito, em 1985, e de ter tirado a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no ano seguinte, Haddad não seguiu a profissão. Preferiu o exercício de atividades que, à primeira vista, não combinam com o perfil de um esquerdista: abriu uma construtora e, depois, foi trabalhar como analista de investimentos em uma das maiores instituições financeiras do país, o Unibanco. Após uns poucos anos, trocou essas carreiras pela de acadêmico, o que culminou na sua aprovação em concurso para ser professor de ciência política na Universidade de São Paulo, em 1997.
Em 2012, a dentista Ana Estela, com quem Haddad é casado há 30 anos e teve dois filhos, contou ao jornal O Estado de S. Paulo um episódio que ilustraria essa sedução pela via intelectual.
Um dia, em 1995, o marido chegou em casa inconsolável, relatando que uma edição do livro Economia e Sociedade, de Max Weber, repleto de apontamentos espalhados a lápis pelas 1,2 mil páginas, tinha sido roubado.
– É inacreditável. Todas as minhas anotações viraram pó – lamuriou-se Haddad.
– Mas onde estava o livro? – questionou a mulher.
– No estacionamento, dentro do carro.
– E o que aconteceu com o carro?
– Ora, roubaram também.
Da expansão do Ensino Superior às falhas no Enem
Em paralelo com essa vivência no mundo algo rarefeito das maquinações intelectuais, Haddad foi acumulando uma série de realizações práticas, o que dá aos seus apoiadores argumentos para desafiar o rótulo de “poste”. Como consultor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, coordenou, no início do ano 2000, a criação da chamada tabela Fipe, amplamente utilizada, que revela a média de preço dos veículos de segunda mão no mercado nacional. Em 2001, virou chefe de gabinete da Secretaria de Finanças da prefeitura de São Paulo, na gestão da então petista Marta Suplicy, a quem teria ajudado a equilibrar as contas do município – uma realização contestada por adversários.
Em 2003, ano inaugural dos governos do PT, ascendeu para a esfera federal, como assessor do Ministério do Planejamento, onde formulou a Lei de Parcerias Público-Privadas. No ano seguinte, o então ministro Tarso Genro chamou-o para ser secretário-executivo do Ministério da Educação. Nessa função e depois no comando da pasta – que exerceu de 2005 a 2012 –, associou seu nome a uma série de programas e iniciativas célebres: o ProUni (de concessão de bolsas em faculdades privadas), o Ideb (que mede a qualidade do ensino nas escolas), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), o piso salarial para professores, o Ensino Fundamental de nove anos, a criação de 14 novas universidades federais, a utilização da nota do Enem para o ingresso em universidades.
A gestão do Enem foi o ponto mais criticado de sua atuação como ministro. Em 2009, a prova vazou e teve de ser adiada. No ano seguinte, ocorreram problemas de impressão, o que obrigou alunos prejudicados a refazerem o exame. Outra crítica é que a ampliação do orçamento para a educação não se traduziu, sob Haddad, em uma melhoria da qualidade do ensino. O país continuou a amargar posições constrangedoras nos rankings internacionais.
Também emergiu na gestão dele à frente do ministério a polêmica do chamado “kit gay”. O então deputado Jair Bolsonaro alcunhou assim um programa para combater a homofobia nas escolas, argumentando que a iniciativa estimularia a sexualização precoce e a homossexualidade. O parlamentar também divulgou que um livro impróprio estaria sendo distribuído às crianças. Por causa da controvérsia, o programa não chegou a sair do papel, mas continuou a ser usado como arma contra Haddad. Recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral determinou que a campanha de Bolsonaro retirasse do ar links que usavam a expressão “kit gay”, depois de constatado que o livro citado pelo candidato do PSL jamais foi comprado pelo ministério e não chegou às escolas.
O episódio continua a assombrar o petista. No domingo passado, em manifestação pró-Bolsonaro em Porto Alegre, um dos oradores tomou do microfone e disparou, do alto do carro de som.
– Falaram que era fake news, mas teve ideologia de gênero nas escolas, sim! Teve kit gay, sim! E foi o Haddad!
O prefeito elogiado nem chegou ao segundo turno
Definido por Lula como o “menino de ouro” do partido, com um perfil moderado capaz de atrair um eleitor de classe média em geral avesso ao PT, Haddad foi escolhido pelo ex-presidente para ser candidato à prefeitura de São Paulo, na eleição de 2012. Deu certo. Mas a gestão como prefeito teve resultados controversos. Haddad colecionou prêmios, foi celebrado pela imprensa internacional e ganhou fama de moderno, pela aposta em ciclovias e no transporte coletivo.
Mas ele também foi o prefeito que autorizou um aumento de 20 centavos na tarifa do ônibus, estopim dos gigantescos protestos de rua que tomaram o país em 2013 e que viraram de pernas para o ar o cenário político brasileiro nos últimos cinco anos. Quando seu mandato chegou ao fim, uma parcela expressiva dos paulistanos estava insatisfeita. Pesquisa de 2015, feita pelo Datafolha, revelou que 44% dos entrevistados consideravam seu desempenho como prefeito ruim ou péssimo. Candidato à reeleição, em 2016, Haddad obteve apenas 16,7% dos votos e não conseguiu sequer levar o pleito para o segundo turno – a primeira vez que isso acontecia com um candidato petista na cidade desde 1992. Até hoje, Haddad tem dificuldade para explicar essa derrota – usada por seus adversários como argumento para mostrar que se trata de um mau gestor.
A prefeitura também legou a Haddad outro fardo, que caiu sobre seus ombros em agosto, quando o lançamento de sua candidatura estava iminente: duas ações por improbidade administrativa (envolvendo supostas irregularidades na construção de uma ciclovia e recebimento de caixa 2 para pagar dívidas de campanha). Segundo o PT, as denúncias foram apresentadas para prejudicá-lo eleitoralmente. Ações de improbidade não envolvem crime, mas responsabilidade cível, sendo puníveis com a perda da função pública, a devolução de valores ou o pagamento de multa. Apesar disso e de não haver condenação, os oponentes do petista têm usado esses casos para tentar colar nele a pecha de corrupto.
O quesito corrupção, no entanto, é um problema menor para o candidato. Há escândalos bem mais graves lançando sombra sobre sua campanha. Ainda que não tenha sido atingido diretamente por mensalão e Lava-Jato, Haddad arca com o pesado ônus do partido que representa.
Muitos brasileiros desenvolveram um ódio profundo ao PT em geral e a Lula em particular, alimentado pelo envolvimento de caciques da agremiação em falcatruas de alto calibre. Por mais que seja distinto e até oposto ao ex-presidente e por mais que demonstre ser um poste com conteúdo, Haddad está preso à armadilha da rejeição motivada pelo antipetismo. No final das contas, o slogan estava certo. Nesta eleição, para o bem e para o mal, Haddad não é mesmo apenas Haddad.