A pedido do Ministério Público Federal (MPF), a Justiça Federal do Rio Grande do Sul arquivou a investigação policial sobre o caso de trabalho análogo à escravidão e maus-tratos envolvendo uma idosa encontrada em um hotel de Garibaldi.
A mulher, que tem o nome preservado pela reportagem a pedido da família, foi encontrada no dia 31 de janeiro no Hotel Pieta, no centro do município, depois de constar como desaparecida por 44 anos. Segundo a Polícia Civil, a idosa, hoje com 74 anos, foi localizada em um alojamento improvisado nos fundos do hotel. No início de junho, o inquérito da Delegacia de Polícia de Garibaldi apontou que havia indícios de trabalho análogo à escravidão, mas sem indiciar responsáveis.
O parecer do MPF, que se manifestou sobre a questão penal do caso a partir da conclusão da investigação policial, concluiu pelo arquivamento e foi encaminhado ao judiciário no dia 6 de junho. Enquanto o inquérito da Polícia Civil concluiu que há indícios de trabalho análogo à escravidão, parecer similar ao do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), o MPF entendeu de outra forma.
A procuradora do MPF Fabíola Dörr Caloy apontou que não há comprovação de vínculo de trabalho e tampouco serviços forçados, jornada exaustiva ou de privação de liberdade envolvendo a idosa e o hotel. Além do inquérito, o MPF analisou documentos do MTE.
O juiz federal aceitou os argumentos de Fabíola e determinou o arquivamento nesta quarta-feira (21). Ou seja, com isso não haverá processo na área criminal.
Caso segue na Justiça do Trabalho
Por outro lado, o Ministério Público do Trabalho (MPT-RS) entende que existe responsabilidade trabalhista do hotel. Por esse motivo, um processo segue em aberto na Justiça do Trabalho. O MPT , por meio de assessoria, esclarece que " a responsabilidade criminal é de atribuição de outros órgãos e não interfere na questão trabalhista. Assim, segue correndo Ação Civil Pública ajuizada pelo órgão. Segue em curso, também, reclamação trabalhista ajuizada pela vítima."
Para advogado do Hotel Pieta, Flavio Koff, "a verdade está sendo evidenciada e a Justiça feita".
— Em relação ao Hotel Pieta, o Ministério Público Federal entendeu no seu parecer que não houve qualquer tipificação penal que pudesse constituir no alegado trabalho análogo à escravidão. Aquela suspeita de trabalho parecido com a escravidão caiu por terra. Isto representa a verdade do que a família Pieta vem dizendo por meio da sua defesa, o que ocorreu e que na realidade ela (idosa) esteve de favor durante 30 anos, morando sendo abrigada e alimentada por não ter onde ir, sem qualquer prestação de serviço e isso está sendo provado — destacou Koff.
O advogado Anderson Thomaz Martins, que representa a idosa, ressalta que até o momento não teve acesso ao teor da decisão. Mesmo assim, Martins ressalta que o arquivamento na esfera penal não inviabiliza que o processo prossiga na esfera trabalhista.
— O arquivamento é da ação para fins penais, o que não impede o andamento do processo na Justiça do Trabalho. Até porque a família está buscando outros direitos trabalhistas para a senhora. O Ministério Público do Trabalho apurou diversas irregularidades sobre essa situação, então, um processo não vai necessariamente influenciar no outro. Embora a procuradora federal entenda que não há indícios, nada impede do hotel ser condenado em razão de outras verbas trabalhistas sobre a situação — avalia Martins.
Uma das sobrinhas da idosa ressalta que a família está grata pelo retorno dela ao convívio familiar.
— A rotina de cuidados ainda permanece. Somos muito gratos pelo retorno de nossa familiar ao nosso convívio, tem sido uma jornada de constante progresso, aprendizado, cuidado, reconhecimento e pertencimento, portanto, nossa vitória é esta. Claro que discordamos da decisão, mas respeitamos a autoridade e competência da decisão. Embora nosso posicionamento como família seja respeitoso e pacífico, confiamos no entendimento de que o fato de haver um arquivamento do processo, em uma determinada esfera da Justiça, não significa que este será o entendimento em outra.
Relembre o caso
:: Ao investigar uma denúncia de maus-tratos e de trabalho semelhante à escravidão, a Polícia Civil encontrou uma mulher, na ocasião com 73 anos, vivendo em um alojamento improvisado no térreo do Hotel Pieta, em Garibaldi, no dia 31 de janeiro.
:: A idosa era dada como desaparecida desde 1979 após ter tido um desentendimento com a família. Contudo, ela só teria entrado para o banco de dados de pessoas desaparecidas em 2021, quando familiares registraram o caso e forneceram material genético ao Instituto-Geral de Perícias (IGP) para comparação em caso de localização. No dia 2 de janeiro, a Polícia Civil promoveu o encontro entre a idosa e a família.
:: Um vídeo feito pela Polícia Civil no dia em que a idosa foi encontrada mostrou o alojamento em que ela vivia nos fundos do hotel, em um espaço que não foi projetado para receber hóspedes. A polícia informou que a idosa fazia as refeições em uma cozinha improvisada, a poucos metros de distância do quarto, que não tinha iluminação ou janelas. A polícia relatou ainda a existência de teias de aranha no ambiente, banheiro sem pia, móveis velhos e gastos nos cômodos. O órgão não informou sobre as condições de alimentação da mulher.
:: Em entrevista ao Pioneiro, no dia 3 de fevereiro, a sobrinha da idosa contou como estavam sendo os primeiros dias da mulher em casa e a readaptação. Teve início, na ocasião, um processo de reapresentação e aproximação cautelosas com os parentes para que a mulher não fosse surpreendida com muitas informações e encontros ao mesmo tempo.
:: Em março, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de Caxias do Sul autuou o Hotel Pieta, em Garibaldi, por 15 infrações que teriam sido cometidas pelo estabelecimento no período em que a mulher anos morou no local.
:: Entre as irregularidades apontadas, estavam deixar de pagar o 13º salário, essência de trabalho análogo à escravidão, não ter pago rescisão trabalhista, não ter pago FGTS, não ter pago a multa de 40% da rescisão, deixar de conceder férias, deixar de submeter o trabalhador a exames periódicos, condição sanitária irregular, refeitório irregular, alojamento irregular, não anotar Carteira de Trabalho e pagar salário mínimo inferior ao vigente.
:: Em 5 de junho, a Polícia Civil divulgou o resultado das investigações. Na ocasião, o delegado responsável, Clóvis Rodrigues de Souza, disse que o inquérito concluiu que o caso tem indícios de trabalho análogo à escravidão.